A residência Hill e a maldição da condição humana


O gênero do terror nasceu de uma mistura da curiosidade humana com o medo. Primeiro com as sombras na floresta, como já dizia o Alan Moore em seu Monstro do Pântano, depois com o medo da tecnologia como já dizia Asimov ao desenhar seu complexo de Frankenstein.

O que costumava atrair a audiência era uma curiosidade mórbida pelo sinistro, mas aparentemente hoje em dia os monstros que nos perseguem parecem ser internos, ou seja, metáforas para o nossos próprios conflitos.

Assim é a "Maldição da Residência Hill", uma investida do Netflix sub-gênero que vem tomando cada vez mais espaço nas histórias assustadoras: o terror dramático.
  • Leia tranquilo, esta crítica NÃO tem spoilers!

UMA HISTÓRIA MAIS INSPIRADA DO QUE ADAPTADA.

Baseada num romance de 1959 escrito pela "rainha do terror" Shirley Jackson, que é tido pelo próprio Stephen King (você vai ver esse nome algumas vezes nesse texto) como "a história de casa mal assombrada mais próxima da perfeição", a série mais se inspira do que adapta o livro, fazendo mudanças significativas no enredo como é o caso, por exemplo, o fato dos personagens que protagonizam a história não serem exatamente uma família, como é mostrado na série. 


Aliás, o romance original tem pouco mais do que 300 páginas, sendo que a narrativa criada pelo Netflix tem 10 episódios sendo que um deles ultrapassa a marca de 1h de duração deixando bem claro as liberdades que o cineasta Mike Flanagan tomou, que ao contrário da bizarra adaptação de 1999, foram liberdades extremamente bem tomadas.

Aliás, há coisas que a gente só podia ver na década de 90, como um filme trash estrelado por Leam Neeson, Catherine Zeta-Jones e Owen Wilson(!) ao mesmo tempo (veja o trailer abaixo):


Portanto, não é surpresa ele ter tomado liberdades com essa história sem negar suas inspirações em Stephen King, ou pelo menos nos conceitos cinematográficos das adaptações de seus livros. Afinal é preciso lembrar que o Flanagan foi responsável por uma adaptação de Gerald's Game, texto do próprio King, que o cineasta tomou a liberdade de mudar o final.

Também é preciso mencionar que Flenagan está atualmente trabalhando na adaptação de nada menos que Doctor Sleep a continuação do clássico do terror O Illuminado (1980), ambos inspirados em textos de King.

Então se você gosta das adaptações de histórias de Stephen King, já sabe mais ou menos o que encontrar nesta série.

FANTASMAS COMO METÁRFORA.

Mas vamos falar aqui de psicologia, porque é o que interessa nesse site.

Assim como no livro IT (também do King) que foi um sucesso de crítica na readaptação realizada em 2017, acompanhamos um grupo de crianças que passou por uma experiência traumática sobrenatural que, de uma forma ou outra, acaba afetando sua vida enquanto adultos.

Só que, de uma forma menos discreta, e segundo alguns críticos, inspirada diretamente do texto da própria autora da história original, a narrativa nos diz boa parte do tempo que "fantasmas são desejos", e porque não podemos dizer, desejos inconscientes ou reprimidos? 

Em certos momentos, há personagens que têm confrontos com visões que representam sentimentos inconscientes reprimidos, e que não são fantasmas. E a narrativa faz questão de muitas vezes desenhar de forma bem óbvia essa mensagem, colocando-a na boca de personagens narradores e até mesmo de um psiquiatra.

O QUE SERÁ QUE FREUD DIRIA DISSO?

A teoria do inconsciente é uma das pedras fundamentais da psicanálise onde os autores explicam que a origem da maioria dos males psíquicos se dá na repressão de desejos inconscientes que quando sufocados traziam os sintomas relatados pelos pacientes. 


A série também diz que os fantasmas são "segredos", e o segredo passa pelo "não dito". Interessante falar aqui que a psicanálise é, de certo modo, a cura pela fala. Afinal de contas para esta metapsicologia, o ato do sujeito construir um texto em volta de seu sintoma ajuda a "curá-lo".

Muitas vezes, a história também desenha que o retorno a casa e o confronto desses "fantasmas do passado" é o que seria necessário para resolver "a maldição" dos personagens. Freud usou essa palavra "maldição" para descrever um mecanismo da mente chamado de "compulsão a repetição", onde o sujeito é "condenado" a seguir repetindo os mesmos erros até que tenha consciência disso.

No mais, a história acaba se tornando uma grande metáfora (bem desenhada e explicada) de que precisamos enfrentar os fantasmas do passado para poder seguir em frente com nossas vidas, nos livrando da "maldição" de repetir os mesmos erros.

MAS VALE A PENA ASSISTIR?

Apesar de serem mais de 10h de história, você raramente se cansa, pois é asada a técnica da narrativa não linear, além de contar a história de vários ângulos de visão, e ângulos cheio de constraste e riqueza, criando na mente do espectador um quebra-cabeças a ser resolvido.

Ao mesmo tempo em que temos aquele terror que invoca a estética vitoriana dos filmes horror mais clássico, a história nos leva para cenários urbanos e centra a tensão da narrativa não no sobrenatural, com os batidos "jump scares", mas sim nos conflitos internos e externos dos os personagens o que vem solidificando cada vez mais o gênero de terror Terror Dramático.

Comentários

Veja também:

Artigos populares