"Us" e os Papéis Sociais



Esse texto não tem spoilers.

Hollywood vem aos poucos descobrindo que o protagonismo negro é rentável. O sucesso do próprio predecessor deste filme, Corra (2017), vem ensinando aos cartolas gringos que a pele e as histórias pretas protagonizam lucro a indústria da arte e do entretenimento.

Se antes "restritos" (estenda essas aspas ao infinito) ao rap e outras formas de atuação musical, a negritude vem impondo seu espaço com bom dinheiro, arrebatando multidões para a surpresa dos desavisados que achavam que poderiam manter uma hegemonia eurocêntrica que representa tão pouco no universo artístico que, porque não, deve ser visto como uma forma de registro do pensamento humano e das diversas facetas da nossa sociedade.

Dentro desse contexto é que surge Jordan Peele numa inusitada carreira como diretor de terror. O artista que vem do humor fez o que já se fazia desde que o gênero nasceu: usar o terror para fazer caricaturas das relações sociais que são atravessadas pela ansiedade que gera o medo. E o que mais aterrorizante do que a vida e a trajetória do povo negro em conflito com a sociedade que o nega, exclui e até mesmo mata?

Monstros são caricaturas de nossos anseios,

e portanto o gênero do terror acolhe muito bem alegorias sociais de uma forma que nos consegue ao mesmo tempo nos divertir e numa segunda camada de aprofundamento pensar sobre a realidade. Mas só se você quiser, é claro.

A narrativa nos faz confrontar um monstro que é igual a nós, que é espelho, mas que passa por angústias que não passamos e busca uma vingança contra esse status quo que faz com que haja um mundo onde um grupo de privilegiados viva a luz do sol enquanto essas imagens espelhadas mimetizem esses privilégios em calabouços enquanto sobrevivem de forma aterrorizante.

O filme leva o espectador a se perguntar o que aconteceria se essas imagens refletidas de nós que tiveram menos privilégios se revoltassem contra a sociedade, clamando até mesmo de forma violenta por esse lugar que ocupamos?

Além da crítica classista, Peele também num terceiro plano nos traz a visão da família negra de classe média "bem-sucedida" que lida com os anseios criados pela sociedade como a busca impulsiva pelo sucesso através de bens de consumo quando comparados a outras famílias mais privilegiadas.

A certa altura do longa, os personagens discutem sobre a casa, o carro e o barco da família branca com a qual eles têm amizade, e apesar de não deixar isso claro (ao menos na minha opinião) nos faz pensar se isso também não é um reflexo do racismo sistêmico da nossa sociedade.

Sobre máscaras e a usurpação de papéis sociais.

Além da grande alegoria sobre essas imagens espelhadas de nós que vivem em angústia pela falta de acesso aos privilégios, o filme também faz todo um paralelo estético às máscaras que vestimos em sociedade quando percebemos que a mãe desta família representada por Lupita Nyong'o por diversas vezes cede ao se colocar em situações de convívio social contra sua vontade e até mesmo enfrentando traumas de infância, apenas para não ter que lidar com a pressão social de romper com esses papeis estabelecidos.

Aliás, o personagem dela faz esse tipo de alegoria diversas vezes ao longo da trama, e de forma até mesmo mais clara e alusiva quando pensamos nesses papéis sociais e a nossa atuação como membros funcionais de uma sociedade nos levando a perguntar se o que nos define é o a eventualidade que nos colocou nesse papel social, ou o papel social que ocupamos.

Sobre a cinematografia do longa,

penso que o filme tem uma fotografia muito bonita e, claro, cheia de referências aos clássicos do terror. Algumas são obvias e outras mais discretas, no entanto, o clima do primeiro ato me prendeu na cadeira. Até aí a mitologia sendo criada me agradou bastante.

Porém, o contato com os "outros", "clones", "imagens espelhos" ou "sombras" foi, para mim, muito literal. Penso ainda que o clímax não precisava ter a proporção que o filme apresentou e nem se explicar tanto, além dele se diferir muito do teor intimista e mais "psicológico" que o inicio do filme propunha.

Mesmo que poucas respostas conclusivas tenham sido dadas sobre a mitologia dessa narrativa, eu ainda penso que Peele além de explicar demais ainda explicou aspectos que talvez fossem pouco interessantes, nos deixando mais preocupados com as consequências do que ocorreu no clímax da história do que em explorar de forma horizontal a natureza dos eventos que aconteceram no filme.

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