Psicologia Preta - Por que a psicologia deve reparação ao povo negro?

 

Foto (reprodução): Mulher negra retira máscara em forma de rosto de mulher branca.
O presente texto é uma exposição que tem por objetivo deixar explícito a necessidade de uma intervenção no processo de formação de profissionais de psicologia, bem como uma chamada a atenção dos profissionais já formados sobre sua prática no que se refere a questão do sofrimento psicológico do povo racializado no Brasil.

Quando visitamos as redes sociais pode ficar a impressão de que o Brasil se descobriu um país negro através de uma hashtag. Porém, os movimentos negros podem ser rastreados até os primeiros anos da colonização dessa nação continental com os primeiros sujeitos escravizados resistindo ao cativeiro, passando por ícones heroicos abolicionistas como Luiz Gama [1] e muitos outros.

Da mesma forma podemos dizer que o movimento da Psicologia Preta precede até mesmo a existência da psicologia como profissão no Brasil. Ao pensarmos que a clínica psicológica pode ter sido inaugurada com a prática da psicanálise, é impossível não erguer nomes como os de Virgínia Bicudo[2], primeira psicanalista leiga (não médica) no Brasil, que já em sua época discutia questões sobre racialização em suas pesquisas.

Já na década de 80 e seguintes, temos personalidades como Neusa Santos[3], psiquiatra e também psicanalista que ajuda a solidificar ainda mais uma psicologia com olhar para os sujeitos racializados em sua obra "Tornar-se Negro"[4].

Portanto, é de se espantar a surpresa de algumas pessoas ao saber da existência de uma psicologia preta.

O Brasil é um país onde a hierarquia social é solidificada devido a sua formação colonial. Uma hierarquia tão adoecida que faz uma nação mesmo em sua independência se remeter a valores europeus e ainda ter com seus países colonizadores uma relação de subordinação.

Há até aqueles que questionam se existe uma "elite" brasileira, pois até mesmo aqueles que detém o poder o fazem através de uma autenticação simbólica que é carimbada por traços fisiológicos europeus, e até mesmo sobrenomes que remetem a essas culturas. Portanto, até mesmo aqueles que seriam os comandantes se deixam comandar por uma força colonizadora simbólica.

Tendo em vista então estruturas sociais tão claramente hierarquizadas seria leviano não falar de uma reprodução dessas estruturas no ambiente de formação profissional.

Apesar da psicologia em sua essência filosófica e ética ser uma prática inclusiva, ainda mais se observarmos o Código de Ética da psicologia brasileira, é importante destacar que no nosso país existe a questão do racismo cordial, uma forma de segregação que vai além do que está no campo daquilo que é escrito e daquilo que é discurso, pois censura a fala sobre si próprio o que torna esse processo ainda mais forte.

O racismo não declarado tem sua estética na ação, no ato de excluir corpos negros das discussões e do espaço acadêmico, e sobretudo, quando falamos de psicologia e outras práticas da saúde, temos que falar aqui do epistemicídio.

Autores negros são sistematicamente ignorados pelos círculos acadêmicos e muitas vezes estão completamente ausentes de grades curriculares de alguns cursos de psicologia no nosso país.

Neusa Santos, apesar de ser uma autora reconhecidamente importante para a psicanálise brasileira, em vida foi ignorada por seus pares e mesmo hoje, com todo o reconhecimento, sua obra é de difícil acesso e menos discutida do que deveria.

Além disso é importante destacar que a psicologia, foca-se em assuntos específicos quando é necessário, como a questão da criança, da cultura, da educação, das pessoas com deficiência, de transtornos específicos e muitos outros que embasam a preparação do profissional para atuação nos diversos campos que lhe são permitidos.

Porém, existem evidências de um sofrimento específico do povo negro no nosso país, um sofrimento causado por um contexto histórico e social que por vezes não é abordado pela formação em psicologia[5].

No Brasil o racismo quando não mata adoece, é fato que a população negra no Brasil adoece psicologicamente muito mais do que deveria, e esse tipo de recorte geralmente não é feito nas universidades.

Portanto, já seria grave se um profissional de saúde como o psicólogo fosse preparado para atuar num curso de cinco anos que não aborda um problema grave da sociedade onde vai atuar, porém a coisa fica ainda mais grave se tivermos consciência de que, salvo exceções: no Brasil as universidades costumam executar racismo em suas estruturas institucionais.

Não é preciso esforço para encontrar artigos e notícias sobre casos de racismo aberto em espaços universitários, ainda mais em cursos da área de saúde que ainda são formações vistas como "elitizadas" pela nossa sociedade.

Então temos a grave constatação de que não apenas o profissional de psicologia raramente é preparado para lidar com questões raciais, como por vezes ele é incentivado pela cultura institucional a atuar de forma racista.[6][7]

Portanto, falar de psicologia preta não é apenas uma missão daqueles profissionais que atuam de forma militante junto aos movimentos negros, é um compromisso ético de reparação da psicologia enquanto ciência que existe em prol da saúde.

O Conselho Federal de Psicologia inclusive embasa essa visão na forma de declarações oficiais e até de uma cartilha[8] que trata sobre a questão racial no Brasil. Porém, acreditamos que este tipo de cultura da classe da psicologia tem que ser modificada durante a formação profissional.

Em conclusão, defendemos a inclusão da discussão sobre a questão da psicologia preta nas universidades de forma oficial tendo em vista uma reparação dos danos causados por uma formação que não instrui o futuro profissional de psicologia a lidar com questões raciais, quando não o incentiva a causar mais dano ao sujeito racializado que chega até o profissional .

BIBLIOGRAFIA:

[1] Podcast História Preta. "Legítima Defesa".

[2] CABRAL, Tiago da Silva. "Vida e obra de Virgínia Bicudo".

[3] CABRAL, Tiago da Silva. "Vida e obra de Neusa Santos".

[4] SOUZA, Neusa Santos. "Tornar-se Negro".

[5] ALVES, JESUS e SCHOLZ. "Paradigma da afrocentricidade e uma nova concepção de humanidade em saúde coletiva: reflexões sobre a relação entre saúde mental e racismo".

[6] Jornal da Unicamp. "Racismo no mundo acadêmico: um tema para se discutir na universidade".

[7] G1. "Racismo em universidades: professores e alunos negros relatam ataques criminosos no interior de SP".

[8] Conselho Federal de Psicologia. "Relações raciais: Referências técnicas para pratica da(o) psicóloga(o)".



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