A psicologia da vadiagem

 

Descrição da imagem: Quatro capturas de tela do seriado chaves onde vemos o personagem Sr. Madruga trabalhando em diversos ofícios diferentes.
O seriado Chaves é um patrimônio da cultura Brasileira. Mas o que essa sitcom tão amada pelo povo do nosso país tem a ver com racismo e com o conceito de vadiagem? Vamos usar bastante psicologia social pra explicar isso a seguir.

No ar desde a década de 70, a série ficou famosa por seu humor leve numa estrutura cênica que lembra muito o teatro italiano e preenchida por interpretações circenses de seus atores que se travestiam de criança. Talvez a narrativa tenha feito tanto sucesso no Brasil devido a representação de uma comunidade pobre no México, que não é diferente da realidade brasileira.

Porém, dentre seus vários personagens, além é claro do protagonista Chaves, a maioria das pessoas deve se lembrar do icônico personagem Sr. Madruga: um pai solteiro desempregado que vivia fugindo do senhorio por não poder pagar o aluguel e sendo agredido diariamente por uma senhora que acreditava ser classe média.

Não sou o primeiro a fazer isso, o seriado Chaves já foi usado para explicar a sociedade brasileira várias vezes inclusive em artigos científicos (exemplo aqui). Mas hoje queremos chamar atenção para uma ofensa bem comum ao senhor Madruga, 

pois mesmo que fosse o personagem que mais era representado trabalhando, ainda era aquele mais acusado de vadiagem.

Na cultura popular, vadiagem é o simples ato de não fazer nada. Ficar andando por aí desocupado, ou de preferência evitando serviço de qualquer natureza. Algumas pessoas acham que a vadiagem é um habito, que depois de um tempo desocupado o sujeito pegue o gosto de não fazer nada e então se veja envolvido por uma inércia que o impede de fugir da preguiça.

Mas há também aqueles que acreditam que a vadiagem é um atributo nato, ou seja, que algumas pessoas já nascem com a falta de "coragem" para trabalhar. Porém dentre os vários erros cometidos ao tentar se especular o que é vadiagem, o que geralmente não se sabe é que esse conceito tem mais a ver com a hierarquia social e o racismo do que com um "desvio moral".

O Brasil é uma sociedade com hierarquia social muito forte, isso porque fomos um país colonizado, e geralmente sociedades que surgem da colonização são propícias a se formar tendo por referência uma capital que está geograficamente distante de si. Portanto, nessa hierarquia as pessoas que representam a capital sempre têm mais poder do que aqueles que já estavam lá, ou seja, os nativos donos originais da terra colonizada, e da mão de obra escravizada que era a principal força de produção na época.

Porém, uma estrutura social tão pesada quanto a colonial não desaparece no ar. Constituições são acordos, não encantamentos mágicos com poderes de mudar a realidade.

Por isso, por mais que as leis tenham mudado, o pensamento colonial ainda reside de forma automática no comportamento das pessoas, afinal de contas não é fácil escravizar um povo. Sequestrar pessoas de seu país natal é apenas o primeiro passo para isso, talvez a parte mais difícil de manter esse processo seja a manutenção do escravizado.

Para tanto, fora as torturas físicas, a ferramenta utilizada pelos colonizadores para manter o corpo escravizado na linha foi a pressão cultural. Era preciso se acreditar que aquelas pessoas bem como sua cultura eram inferiores e precisavam ser "guiadas" pela mão branca europeia para que pudessem "progredir" - o que na prática era produzir pra eles.

Mas o que isso tudo tem a ver com Chaves e com a vadiagem?

Essa cultura tinha a função de controlar o corpo negro e envolvia, como já dito, acreditar que essas pessoas precisam do comando branco para produzir. E parte desse sistema de pensamento era presumir que negros eram preguiçosos.

É importante lembrar que com a libertação das pessoas escravizadas não houve nenhum tipo de suporte para os negros agora livres. Naquela época não existia nenhuma forma de programa social ou coisa do tipo, então muitos foram apenas jogados nas ruas a própria sorte.

Pra piorar, o governo da época além de não dar suporte aos ex-escravizados ainda trouxe imigrantes europeus para trabalharem no Brasil, dando a eles benefícios como terras e até empréstimos generosos enquanto os negros libertos não sabiam o que fazer para comer. O que poucos sabem é que esta imigração ocorrida após o fim da escravidão tinha fins ainda mais perversos, pois o grande objetivo da Sociedade Brasileira era se tornar majoritariamente branca. Sim, estamos falando de eugenia.

Os negros na miséria e sem emprego eram vistos pelas ruas a vagar, reforçando ainda mais o bizarro estereótipo do vagabundo.

Além disso, a cultura da escravidão também incutia nas pessoas brancas o erro de que pessoas negras eram perigosas. Portanto ninguém queria ver os negros zanzando pelas ruas. Então qual seria a solução para o "problema dos negros" como era dito na época? Dar terras pra eles? Lhes dar incentivo como empréstimos e acessos a ferramentas estava sendo feito com imigrantes? Claro que não.

A sociedade brasileira, entendeu que o "problema do negro" era na verdade uma questão de segurança pública. Isso não aconteceu só aqui, mas em muitos países colonizados onde havia escravidão.

Porém, numa época pós-escravidão não pegava bem sair por aí colocando pessoas negras atrás de grades só pelo fato de serem negras.

Portanto, a solução encontrada foi cada vez mais criminalizar comportamentos típicos daquelas pessoas. Ou seja, não iriam hostilizar e prender os negros apenas por serem negros. Mas então, se os negros não têm emprego, vamos criminalizar a vadiagem.

Se o caro leitor não acredita no que eu estou falando, além da vadiagem práticas como capoeira e o samba já foram amplamente reprimidas pelas sociedade brasileira, havendo até um fato histórico de um sambista ter sido preso pelo crime de portar um pandeiro (Fonte: G1/BBC, 2020). Há ainda vários autores que acreditam que a criminalização do uso das drogas e a guerra contra o tráfico tenha se originado na tentativa de conter certos seguimentos da sociedade, afinal de contas o assunto do abuso de substâncias deveria ser tema das políticas de saúde e não de segurança pública (Diplomatique, 2019)

No Brasil, ainda hoje existe uma lei em vigor, mas supostamente em desuso, que prevê detenção(!) para pessoas vadiando. O art. 59 do Decreto n.º 3.688 de 1941 prevê até 15 dias de prisão para quem for pego andando sem documentos e não comprove ter ocupação. Esta lei era muito utilizada durante a ditadura para prender pessoas arbitrariamente.

Descrição da imagem: recorte do Jornal O Globo da época da ditadura onde se lê: "Intensifiquem a repressão a vadiagem. Recomendação do chefe de polícia aos delegados. O chefe de polícia recomendou a todos os delegados distritais que intensifiquem a repressão a vadiagem e aos desocupados, processando-os de acordo com o artigo 59 da lei das Contravenções Penais.

Hoje em dia basta ligar a TV para entender que a vadiagem está ainda mais associada ao crime quando os tabloides televisivos usam sem pudor a palavra "vagabundo" para descrever pessoas potencialmente perigosas que devem ser punidas severamente.

É claro que aqui não estamos dizendo que todo sujeito chamado de "vagabundo" é negro, e que crimes como assassinatos e outros atos cruéis não choquem a sociedade. A questão é que não é difícil encontrar artigos que provem estatisticamente que negros e pobres são maioria entre os presos (Câmara dos deputados, 2018) e os assassinados pela polícia (UOL, 2020), e até mesmo entre os policias assassinados (Folha, 2020).

E talvez por isso a série Chaves seja um dos melhores exemplos pra a gente falar da sociedade porque além da clara representação da hierarquia social vemos o personagem que mais é retratado trabalhando ser chamado de vagabundo e sendo considerado preguiçoso pelos demais, demonstrando que obviamente esse conceito foi criado para reforçar papéis sociais negativos e aliviar a consciência daqueles que têm o poder de mudar isso, mas preferem deixar as coisas como estão, ou quem sabe, até incentivar ainda mais essa desigualdade.

Comentários

Veja também:

Artigos populares