Sequelas do racismo contra o negro de classe média no Brasil

Descrição da imagem: Foto de homem negro com olhar perdido no horizonte, sentado de pernas cruzadas contra um cenário verde com montanhas ao fundo.

A experiência de ser pessoa negra de classe média no Brasil é uma fonte de conflitos internos na psicologia de muita gente. Alvo de conceitos como a psicologia preta, abordagem que visa corrigir erros sistêmicos históricos na ciência psicológica, o sofrimento da pessoa negra na sociedade brasileira é o tema desse texto que visa introduzir parte dos discursos de sofrimento ecoados por pessoas negras especialmente aquelas de de classe média no Brasil do Século XXI.

Esse texto foi publicado originalmente no Twitter. Aqui ele se encontra ampliado e corrigido, mas você pode acompanhar a discussão em tempo real no link abaixo.

Importante considerar que este texto não é algo definitivo, muito menos resolutivo. Temos por intenção apenas pincelar alguns dos discursos de sofrimento que vejo na clínica e nos meus estudos em psicologia preta. 

Interessante nos atermos ao fato de que o recorte sobre a classe média não é algo voluntário, tendo em vista que mesmo com a crescente presença da psicologia nas políticas públicas como as de assistência social e de saúde, a população mais pobre mal possui representação em seu imaginário da função do psicólogo (vide bibliografia). Portanto, mesmo que sem custos, podemos imaginar que quem mais usa os serviços de psicologia ainda seja quem tem mais acesso a renda e a educação razoável.

Mas de qual classe média estamos falando?

Primeiro é preciso observar que o conceito de classe média no Brasil é algo muito plural variando de acordo com o ponto de vista dos autores. Neste artigo partiremos do ponto em que é considerado classe média quem tem renda fixa, casa e carro (ou acesso a transporte de qualidade). Principalmente daquelas famílias que dependem do trabalho para manter seu estilo de vida, e que parte importante de sua renda (senão toda a renda) depende da exploração de sua mão de obra.

Portanto não interessa se você ganha 2 mil ou 20 mil. Se o responsável (ou responsáveis) pela renda familiar não conseguirem manter seu estilo de vida ao serem demitidos, então esta família é, nesse texto, o conceito de classe média. Tendo em vista isso, também precisamos considerar uma coisa que falo muito por aqui que é a Inflação Negra

No Brasil o custo psicológico para pessoas negras acessarem certos espaços é mais alto. Isso porque as pessoas negras têm muito mais dificuldades de serem aceitas em certos círculos sociais, seja no emprego, na carreira artística, e etc porque temos no Brasil uma hierarquia social extremamente colonial, patriarcal e, claro, racista. Portanto, há posições sociais que são ratificadas pela hierarquia social que no Brasil é racializada, ou seja, não há renda ou condição sócio econômica que "embranqueça" o negro, ao contrário do que se diz no conhecimento popular.

Penso sim que muitas vezes o negro com poder/dinheiro pode ser "tolerado" num circulo social,  porém sempre por conveniência. Porém, muitas das vezes, cessado o benefício de sua presença nessa posição o que talvez se veja é uma cobrança desse "passe" que foi concedido lembrando sempre de que aquele corpo negro nunca foi aceito como pertencente aquela posição, mas sim tolerado momentaneamente. Porém, mesmo na manutenção desta conveniência, parece existir uma pressão da ordem do não dito, talvez por parte de um reforço coletivo desse grupo de uma sensação de "mal estar" com a presença do negro naquela posição. Algo que sempre será veementemente negado, e que ajuda no adoecimento do corpo negro que ocupa aquela posição.

E é aí que os problemas começam. 

Levando tudo isso em conta, a família negra que consegue chegar a um certo nível de conforto provavelmente passou por gerações de luta pra chegar lá. E como disse o rapper Emicida numa entrevista no canal do Prof. Silvio Lual "a gente luta é pra parar de lutar, não pra lutar mais", então famílias negras na classe média talvez só queiram viver a vida em paz colhendo a injusta recompensa que foi possível, mesmo depois de tanto esforço. Então é nessa hora que devido ao condicionamento obsceno da sociedade que reforça quem nega o racismo, essa família pode incorporar em sua cultura que talvez seja vantajoso fazer vista grossa para o racismo,

isso porque todos sabemos que, apesar dos séculos de luta, o tema do racismo é extremamente mal recebido no Brasil.

E ainda há um negacionismo histórico institucionalizado no país sobre o assunto. Somos então condicionados a "deixar quieto" o problema do racismo tendo em vista que isso talvez possa ameaçar a posição social conquistada com tanto sofrimento. E isso é reforçado pelo desconforto a nossa volta quando tratamos do tema, e os sorrisos que vêm logo em seguida de quando dizemos "mas isso não acontece aqui", ou então "mas com vocês é diferente". E isso gera um conflito muito perigoso, porque a violência racista não cessa se fingimos que ela não existe.

E o que a sociedade da meritocracia ensina pra gente se ignoramos o racismo? Ela tenta dizer que o problema é quem reclama, é quem entoa o discurso do "mimimi", do que eles cruelmente chamam de "vitimismo". Então é nesse processo cruel e coletivo, tão harmonizado e disciplinado quanto uma orquestra, que o sujeito do racismo pensa de forma meritocrática internalizando a culpa pelo próprio sofrimento, portanto, conclui que deve assumir a responsabilidade por tudo aquilo que os outros fizeram com ele.

E quando internalizamos a culpa por esse ciclo de violência e de não aceitação isso vira ansiedade, depressão, pânico e muitas outros sintomas.

Logo, se você se esforçou mais que todo mundo e ainda assim não conquistou aquele emprego, a culpa é só sua. Se o grupo de amigos não te aceita, mesmo que você se esforce muito, é mera coincidência que seja seu o único corpo negro naquele coletivo. Interessante dizer aqui que isso cria uma impossibilidade para  a psicologia do sujeito negro, porque o esforço necessário para a aceitação da sociedade vai tender ao infinito, por isso o sujeito mergulha portanto numa jornada desumana rumo ao horizonte.

Frants Fanon idealizou esse conceito de uma "máscara branca" que os sujeitos negros tentariam vestir para se "infiltrar" na sociedade de hierarquia colonial, e a psiquiatra e psicanalista Neusa Santos, atualiza e amplia esse conceito para a sociedade brasileira em seu livro "Tornar-se Negro" de que só o branco é bonito, só o o que é branco é aceito. Inclusive, muitas vezes a pessoa negra de classe média acaba cobiçando corpos brancos por par para tentar "clarear" a si mesmo através de uma prole mais alva, ou então por aproximação daquilo que ele foi ensinado a admirar.

Porém acontece que algumas vezes relacionamentos entre pessoas negras e brancas não é proporcional, principalmente quando aquelas pessoas são não só de cores, mas de classes sociais diferentes. Neusa narra isso em vários casos de seu livro, sendo que este tipo de relacionamento acaba também sendo fonte de angústia, isto é, quando ele chega a meramente começar, porque por vezes o padrão é a rejeição do corpo negro. Claro, não estamos dizendo que um relacionamento interracial seja desigual por natureza, ou que exista uma impossibilidade de amor entre corpos negros e brancos, porém muitas vezes existem pressões externas que podem sim criar ruídos nessa relação.

Enfim, a sociedade brasileira uma estrutura construída para que o corpo negro seja não só recusado, mas também receba ódio de si mesmo vendo abalada sua autoestima, sendo vetada desde sua própria mente as possibilidades. E fica evidente que essas pressões sociais geram sofrimento. Por isso o tema da psicologia preta é um assunto tão importante para a ciência psicológica brasileira. Precisamos não só de cuidado, mas também de reparação! E não estamos falando aqui de uma reparação da ordem do subjetivo, ou seja, individual, mas sim de uma reparação de uma sociedade que está adoecida.

BIBLIOGRAFIA

CENSI, Claudia M. B. Representação social da psicologia em um bairro periférico de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. Obtido em < http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942006000200005 > acessado em 02 de Ago. de 2021.

DIMENSTEIN, Magda. A cultura profissional do psicólogo e o ideário individualista: implicações para a prática no campo da assistência pública à saúde. Obtido em < https://www.scielo.br/j/epsic/a/FbK3GQ3CR4PDPKGNHZQ3bSk/?format=pdf&lang=pt > acessado em 02 de ago. de 2021.

FANON, Frants. Pele Negra Máscaras Brancas. ‎ Ubu Editora,2020.

LUAL, Silvio de Almeida. "Eu LUTO para um dia NÃO TER QUE LUTAR MAIS." | Entrelinhas. YouTube 15 de jul. de 2021. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=dSZ36sSVeMg >.

SOUZA, N. S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: LeBooks, 2019.



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