O direito de violar - Um ensaio sobre a natureza da posse do útero na sociedade moderna

Recentemente às redes sociais se inflamaram devido a decisão da suprema corte dos EUA que, em resumo, tira o direito das mulheres estadunidenses de fazer o aborto legalmente. Isso reacendeu um debate milenar que surpreende e revolta quem tem o mínimo de consciência social que é sobre a posse das pessoas sobre seus próprios corpos numa sociedade de mais valia.

É, de fato, um absurdo que consigamos avançar tanto em tecnologias materiais enquanto que às tecnologias sociais, ou seja, às ferramentas que criamos para interagir uns com os outros como às leis e instituições, ainda obedeçam regras que reproduzem crueldades do início da nossa dita “civilização”.

Parando para pensar brevemente, na sociedade patriarcal o útero sempre foi uma posse, um objeto a ser desfrutado por seu dono, um homem, não a pessoa que nasceu com ele.

Uma posse tal qual um terreno ou bem qualquer. A sociedade judaico-cristã “ocidental” criou a família como uma instituição cuja função é, simplificando algo extremamente complexo, determinar heranças e controlar o desenvolvimento dos sujeitos que irão atuar nessa sociedade. Não é atoa que a família acaba tendo importância cabal numa outra tecnologia social que são às instituições religiosas, que solidificam ainda mais os conceitos de propriedade e o direito de possuir espaços de terra, bens e até mesmo corpos alheios. Claro que aqui falamos de religião enquanto instituição, não enquanto fé. Até porque muitas instituições religiosas acabam tendo função política executando por algumas vezes práticas estranhas à fé que dizem defender.

Nessa sociedade então o útero não faz parte de um corpo de uma pessoa, mas sim executa um serviço público, ou seja, serve a sociedade e aos interesses daqueles que a governam, e isso através de seu proprietário legal: o homem que semeia e conquista esse espaço, assim como um terreno, através da lei, do abuso econômico ou até mesmo da violência.

É importante ratificar aqui novamente que a ideia da posse de um útero foi uma invenção, e serve a interesses políticos de grupos específicos. 

E se no passado usavam a religião para autenticar essa posse, hoje os conservadores, ou seja, aqueles que pregam a manutenção do sistema social vigente, criam uma nova narrativa mítica usando a falácia do naturalismo, ou seja, dizendo que instituições como a família nuclear burguesa seriam um processo natural, orgânico. E que portanto a posse e a servidão do útero seriam algo que simplesmente acontece como uma lei da física.

No entanto, não faltam exemplos de formatos de grupos humanos que divergem das famílias. No próprio Brasil, os povos originários tinham modelos extremamente distintos disso que chamamos de família e até mesmo de sexualidade. Se formos a continentes como a África encontramos também muitas culturas com tecnologias sociais muito avançadas, desenhadas por milênios para acolher a diversidade, não concentrar o poder na mão de oligarquias. Na China, existem grupos sociais liderados por mulheres, onde às mesmas se relacionam com mais de um homem e estes são responsáveis pelos cuidados das crianças. E mesmo na própria Europa, haviam civilizações matriarcais.

É impossível não fazer um recorte, muito importante que é quando falamos das mulheres negras, que sofreram ainda mais com este conceito de posse. Sofreram com estupros sistemáticos, foram amas de leite e babás enquanto seus filhos eram abandonados, e até hoje seu corpo é visto como inferior, como objeto.

A posse do útero foi inventada! Isso precisa ser lembrado e repetido a exaustão! Foi criada tal qual foram às demais tecnologias humanas, para servir a um propósito. O direito criado pelo estado dele possuir um útero e assim dizer que ele não faz parte de uma pessoa o transforma portanto no direito de violar o corpo de alguém. E no Século XXI, que é quando pilotamos robôs em Marte, quando temos a capacidade de fazer neurocirurgias, quando descobrimos a genética, ou fazemos descobertas na psicologia que permitem diminuir muito o sofrimento humano, aceitar que existam leis que garantam o direito de uma pessoa ou instituição violar o corpo da outra é algo ultrajante, que deveria nos envergonhar enquanto sociedade.


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