Psicanálise vs Ciência - Existe mesmo esse debate?
Desde a sua criação, a psicanálise vem sendo questionada enquanto ciência. De fato, as obras de Freud são controversas tanto quanto o método que ele inventou. Essa disputa se intensifica quando trazemos o debate para o campo da psicologia, que é uma ciência que faz questão de pagar todos os preços necessários para se chamar como tal. Raramente vejo um meio termo nos discursos sobre psicanálise dentro da psicologia brasileira, você ama ou você odeia.
Hoje observando o twitter, vi novamente o prof. Christian Dunker falando sobre o assunto, discutindo artigos que vetam a psicanálise como algo confiável, ou científico. Aqui vamos nos basear em alguns vídeos dele, nos artigos citados lá nesse fio (sequência de twitts abaixo), e na minha própria experiência pra falar um pouco sobre o assunto. Destaco que isso aqui não é um artigo científico, mas sim um texto de opinião.
“Questão de Ciência” faz um grande trabalho em divulgação científica, mas na parte de psicanálise o conteúdo é sofrível e equivocado, devia ser retirado do ar:https://t.co/7ggtIQgBTX
— Christian Dunker (@Chrisdunker) September 4, 2022
Há os que veem a psicanálise mais próxima de uma filosofia, ou uma arte. Este último conceito, é claro, ignora que o significado de arte também é técnica, e não apenas a questão da livre expressão. Mas a pergunta que deveria estar sendo feita é, será mesmo que a psicanálise se importa com essa conceituação científica?
Já vi diversos discursos onde a psicanálise se propõe enquanto uma forma de terapia independente, cuja autoridade deveria vir única e exclusivamente do próprio psicanalista, que após ele mesmo concluir sua análise, disponibiliza seu ouvido para outras pessoas promoverem seu encontro com o inconsciente. Mas também há discursos de psicanálise, como a do prof. Dunker, enquanto uma política pública, que deveria ser ofertada até mesmo de graça em algumas ocasiões, o que gera uma discussão sobre a violação do próprio método terapêutico criado por ela.
Neste ponto, temos que ser bem duros e questionar se a psicanálise quer mesmo ocupar esse lugar que é instituído por um poder externo, seja ele o estado ou o terceiro setor. Pois, quando inscrevemos a psicanálise num lugar de saúde pública, precisamos nos perguntar se este não é um lugar que obedece a forma de saúde imposto pela semiologia médica, que se propõe enquanto ciência. Ou será que quando propomos a psicanálise dentro da saúde pública estamos falando de uma mudança de visão sobre o que é saúde? Se a psicanálise quer ocupar um lugar institucional na sociedade, ela não precisa estar amparada pelos pilares que a sustentam nesse momento?
Além disso, a psicometria da psicanálise se tornaria, no meu entendimento, impossível quando se considera o conceito de saúde nessa visão de mundo que, ressaltamos, não é mensurável, mas sim subjetiva.
Em Skinner, que é um autor que propõe uma psicologia rigorosamente científica, é negado até mesmo o conceito de mente, sendo o comportamento observável e mensurável a única expressão da subjetividade passível de intervenção. Mas questiono: será que saúde mental pode ser considerada apenas estar emitindo comportamentos que aparecem dentro de um campo estatístico mediano? Será que é possível, neste momento da história humana, catalogarmos todos os comportamentos, bem como suas variações? Pois a psicologia comportamental, vítima aqui do nosso exemplo de pensamento científico dentro da psicologia, da a entender que se o comportamento humano fosse uma fórmula, suas variáveis seriam quase infinitas, pois somos fruto de todos os estímulos aos quais fomos expostos no nosso ambiente.
Gostaria então de propor aqui um experimento mental. Vamos supor que exista uma máquina mágica de clonagem que consiga reproduzir a nível subatômico todas as estruturas do corpo humano, e assim obtermos uma cópia exata, dentro daquilo que conhecemos por ciência hoje, de um sujeito. Consideremos que acabou de ser feito essa clonagem mágica, e que nessa sala há dois corpos, ainda inconscientes.
Supondo que isso que chamamos de “mente” é estritamente fisiológico, no minuto zero desse experimento, esses sujeitos são, de fato, iguais. Mas, levando em conta o que Skinner disse sobre nosso comportamento ser fruto dos estímulos ambientais, será que, a partir do momento em que aqueles dois corpos despertarem, eles já não seriam sujeitos diferentes?
Vamos então imaginar que no minuto um essa pessoa desperte. Ela ainda está na mesma sala que o seu clone, mas em pontos diferentes dela. Será que a partir daí os estímulos que essas duas pessoas, exatamente iguais, recebem já não é diferente? Então seguimos para a primeira hora, onde essas pessoas serão atendidas e examinadas de forma diferente, por pessoas diferentes, porque vamos considerar que apesar de ser possível reproduzir aqueles corpos de forma exata, não é possível reproduzir o lugar no mundo onde eles ocupam. Falamos aqui de todos os estímulos sensoriais que esses clones receberiam. Considerando ainda a teoria do caos, mesmo a menor alteração no ambiente já criaria sujeitos que, ao longo do tempo e da cadeia de acontecimentos aos quais os dois se submetem, seria então, considerando a teoria de Skinner, impossível ter dois sujeitos iguais mesmo que eles fossem clones com exatidão subatômica.
No entanto, teríamos que considerar que na medicina isso também é abordado. Um cardiologista certamente não vai encontrar em sua carreira órgãos que sejam exatamente iguais, ou clones. Portanto, em sua especialização ele também vai estudar as variações como patologias, malformações e outras coisas que possam chegar ao seu consultório. Acredito que seja por isso que o prof. Dunker ainda diga que nem mesmo a medicina, que é ciência, tem em sua clínica uma prática 100% científica, porque seria impossível prever todas as formas de coração que poderiam existir num universo de quase 7 bilhões de seres humanos existentes no planeta, além do fato do conhecimento do cardiologista ser algo finito e restrito a sua memória.
A psicologia, para se firmar na ciência tem seus pés apoiados sobre a fisiologia e a estatística para poder mensurar o comportamento humano, ato muito bem sucedido, diga-se de passagem. E eu, pessoalmente, considero que o fato da psicanálise também não se apoiar nessas técnicas algo que impossibilita a profissional de psicologia de usar a psicanálise como técnica exclusiva de psicoterapia. Porém, o meu questionamento aqui é sobre o lugar onde residiria a saúde mental.
Será que é possível classificar o sofrimento existencial dentro das patologias fisiológicas? Em psicologia estudamos também a semiologia médica no que se refere aos transtornos mentais. E, na minha experiência clínica, raramente vemos diagnósticos psiquiátricos baseados numa metodologia estatística, como deveria ser. Lembrando que não estou dizendo aqui que isso não seja uma prática que exista. A maioria das vezes esses diagnósticos são feitos de forma clínica, baseados no conhecimento do médico sobre aquela patologia após uma entrevista. A neuropsicologia tem avançado muito em sua psicometria, permitindo, inclusive mensurar a intensidade de certos transtornos o que ajuda muito o profissional médico na hora de suas intervenções, bem como o próprio profissional de psicologia na hora de escolher a melhor forma de abordar o sujeito, sabendo separar o que é de ordem psiquiátrica, ou seja, patológica, e supostamente orgânica, do que é um sofrimento, digamos, “existencial”. Aliás, até mesmo a própria neuropsicologia se vale de testes projetivos, ou seja, que são baseadas em teorias, muitas vezes, psicanalíticas.
E o que seria esse sofrimento existencial? Qual a sua diferença diante das patologias psiquiátricas já tão mensuradas? A psicanálise é uma prática que, assim como na semiologia médica, também tem base no sintoma. Portanto, a ausência de sintomas fisiológicos poderiam caracterizar um sofrimento de ordem filosófica ou existencial?
Consideremos então um sujeito sem sintomas médicos. Essa pessoa tem o humor estável, seus afetos estão dentro da média. Ela trabalha, estuda, tem sua dose de lazer e de convívio social. Ainda assim, ela aparece na clínica se queixando de insatisfação, de algo que lhe falta, mas que ela não consegue explicar. Seus exames estão em dia, o profissional de psiquiatria a atende, mas a dispensa sem nenhuma prescrição. Essa pessoa faz exercícios físicos, se alimenta bem, toma sol todos os dias, tem um emprego razoável. Ainda assim, algo lhe falta e isso gera uma angústia que é um incômodo. Não existem comportamentos disfuncionais nessa pessoa, nesse sujeito sem sintoma. Não existe uma dor física, apenas uma queixa que essa pessoa mal sabe explicar.
Quem trata esse sujeito? Quem acolhe essa pessoa?
Cientistas, médicos e psicólogos comportamentais radicais diriam que pode haver ali um diagnóstico mal feito, ou então um engano da própria pessoa, que pode estar incomodada com algo que não sabe descrever, ou até mesmo imaginando um problema onde ele não existe. Mas e aí? A gente desautoriza a fala dessa pessoa e a dispensa? Será que ao fazer isso não estaríamos fazendo como no início do século XX onde questões mentais eram, simplesmente, ignoradas?
Existe um outro problema também que é de ordem epistemológica. Este é um ramo do pensamento que tenta descrever e questionar sobre como nós formamos o nosso conhecimento. E é sobre ele que vamos nos debruçar aqui. Com todos os avanços científicos, não conseguimos abrir mão do conceito de que o conhecimento não pode ser sólido. Ele muda, precisa ser contestado por pares para se firmar. Precisa ter efeito prático observável em nossa vida. Porém, parte desse processo de validação, algumas vezes, pode não passar pelo questionamento do aparelho que cria esse conhecimento, ou seja, o sujeito. A filosofia e pensamentos como o da psicanálise são formas de conhecimento que talvez estejam do lado de fora da ciência, porque criticam a mente que cria a ciência.
A ciência se propõe neutra, e de fato, através dela conseguimos chegar ao máximo da neutralidade que podemos obter nesse momento histórico. Mas ela não é absoluta. Aliás, a ciência é tão bela justamente por não se considerar absoluta, e é por isso que ela consegue evoluir constantemente. Porque naquilo que é sólido não há espaço para mudança. A estatística vem revolucionando o pensamento científico justamente por considerar falhas, considerar pequenas exceções que podem mudar o quadro do que é estudado.
Mas aqui eu faço uma pergunta sincera. Uma pergunta de um ignorante, de um não cientista. Será que a ciência, mesmo com a estatística avançada, é capaz de ignorar o sujeito que a opera? É capaz de ser neutra, não sendo atravessada por ideais políticos, ou até mesmo pessoais? A vantagem da psicanálise e das outras formas de filosofia é que se coloca o dedo nesta ferida que a sociedade tanto tenta evitar: a de questionar o lugar do sujeito. De considerar que existe alguém por trás de um conceito, de uma ação.
Claro que considero aqui que o que valida a ciência é a própria comunidade científica. Ela é feita por pares. Afinal, quando um cientista erra, erra toda a ciência? Óbvio que não. Justamente pelo erro ser público, é que outras pessoas são convidadas a questionar e entender esse processo. Mas, talvez estejamos apenas considerando o processo, como se fosse algo puro, natural, intocado por um ser humano. Por isso precisamos ter um sujeito na ciência, alguém que se coloque enquanto ator desse processo. Sim, eu sei que isso já acontece, mas será que é frequente? Será que estamos conscientes disso quando nos propomos a fazer ciência?
Então, por que na psicologia, nas diversas psicoterapias, não podemos ter abordagens que estão prontas para receber esse sujeito, fruto do caos, do inominável, daquilo que não conseguimos descrever? O sujeito que é afetado por aquilo que ainda não entendemos, que não medimos, ou ainda não sabemos explicar?
Para mim, dentro da psicologia, a psicanálise é uma ferramenta tanto quanto a estatística, a neurociência, ou a semiologia psiquiátrica. É uma técnica específica que pode atender a situações específicas, onde temos esse sujeito cujo sintoma circula apenas no campo da fala, do texto. Um sintoma que vem de uma incongruência entre o seu próprio pensamento e a realidade a sua volta.
Para finalizar, de minha parte, eu prefiro deixar a ciência para os cientistas de suas áreas. Será que um físico teórico, salvo casos extremamente específicos, pode opinar de forma bem sucedida sobre conceitos avançados de biologia? Por que então, vemos tantas pessoas que não estudam filosofia, não estudam epistemologia ou nem mesmo estudam psicologia querendo sentenciar a psicanálise ao rótulo de metapsicologia? Será que métodos estatísticos seriam eficazes para medir o que a psicanálise propõe fora do campo da semiologia dos transtornos mentais?
Essas são perguntas sinceras, que dedico a minha vida a verem ser respondidas. E que os colegas, aqueles que acreditam na ciência e no conhecimento, venham me contestar. Destaco que eu realmente gostaria que existissem pesquisas que levassem mais a sério o método psicanalítico, buscando “isso” que chamamos de inconsciente nas neurociências e na estatística. Mas para fazer isso de forma plena, é necessário de fato estudar a psicanálise como ela própria se propõe. É o que penso.
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