Por que personagens antissociais cativam tanto?


Hannibal, Dexter e outros personagens da cultura pop talvez possam se juntar  ao polêmico Coringa (2019) (que eu já critiquei aqui) como personagens que carregarem traços antissociais - em doses diferentes é claro - acabam por ser aclamados pelo público sendo que eles teriam tudo para serem odiados por sua conduta sem empatia e inconsequente. Será que a psicanálise poderia nos ajudar a entender?

ESTRUTURAS DA PERSONALIDADE PSICANALÍTICA

Reprodução: personagem House também carrega traços antissociais.
Para Freud e a psicanálise existem três formas de patologia psíquica: a Neurose, a Psicose e a Perversão. Para o pai da psicanálise tudo está ligado a forma como nos relacionamos com nossos objetos de desejo. Aqui vamos omitir a Psicose.
A neurose é fácil de explicar, já que como eu e provavelmente você fazemos parte do grupo dito "normal", ou seja, somos neuróticos. Este não sabe bem o que o satisfaz. Por isso sentimos vontade de comer "não sei o que", ou então, por mais que queiramos algo, quando encontramos este algo ele não nos satisfaz plenamente.
Já o perverso tem um objeto de desejo fixo. Um exemplo de perversão é o transtorno sexual conhecido como pedofilia. Eles só se satisfazem com crianças, porém se satisfazem plenamente. Ou seja, o perverso sabe exatamente o que quer, e faz o que for preciso para satisfazer seu desejo, independente do que seja. Não importa se for imoral, se for violar alguma lei ou mesmo machucar alguém, o perverso sempre vai atrás do que quer e só se satisfaz quando consegue aquele objeto de desejo específico.

No entanto, por mais que você entenda que a perversão é uma doença psíquica você gostaria muito de saber "o que quer da vida" e acabar com sua indecisão; ou mesmo saber o que é que te faz feliz de verdade, o que satisfaz seus desejos. Ou seja, o neurótico, de certa forma, inveja a perversão.

A pessoa com personalidade antissocial tem dificuldades de se encaixar e nem tudo é mil maravilhas como no cinema ou na TV.

É fato que muitos desses personagens apresentam características dessa patologia psíquica. Jack Bauer não mede esforços para cumprir seus objetivos, além do mais, imagine se ele fosse parar pra pensar se torturar alguém para obter uma informação é ético ou humano? Ele não o faria. Geralmente ele foca no seu objetivo e não mede esforços para alcança-lo. Porém há uma desculpa na linha de ação deste personagem: o objetivo dele é "salvar o dia".
House administra tratamentos sem ter certeza do diagnóstico, faz intervenções cirúrgicas em pacientes sem ter certeza da doença, em fim, quebra o código de ética da medicina várias vezes ao longo dos episódios, porém, ele salva vidas.
Como se pode ver, os antissociais têm amostragem não só entre os vilões, mas entre os mocinhos também. 

Porém, por mais que eles sejam chamados de "mocinhos", têm que quebrar as regras e agir além da moral ética para atingirem seus objetivos.

Porém, esses personagens não são não são, em sua maioria, perversos.

Além da fixação do objeto de desejo, a perversão está conectada a ausência de culpa. O perverso acredita sempre que ele está certo, e que o mundo está errado. Por isso na ficção eles são, geralmente, assassinos, estupradores, pedófilos e etc. Um exemplo ameno de perversão é o sadomasoquismo

Então, em geral, os anti-heróis ou antissociais são neuróticos como eu e você.

Isso facilita bastante a identificação do personagem com o público o que aumenta ainda mais seu carisma.
No entanto, os badass são em sua maioria classificados por uma subdivisão da neurose, que é chamada de neurose obsessiva. Na neurose obsessiva, principalmente a compulsiva, também há uma ideia de fixação de um objeto. Porém, o neurótico obsessivo não tem controle sobre isso, isto age além dele. Um caso de neurose obsessiva é o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC).
Pessoas com TOC realizam verdadeiros rituais, geralmente relacionados com limpeza ou organização, no entanto, não estão confortáveis com sua situação. Ou seja, eles têm ideia de moral e ética, a transgressão pesa em sua consciência. Isto acontece com a maioria dos personagens antissociais, salvo os perversos.
Mas isto não é igual a vida real? Quando você quebra uma regra você se sente mal por isso, 

então o que os antissociais têm de diferente?

 Os antissociais, como bons neuróticos obsessivos "atiram primeiro e perguntam depois". Além disso, eles sempre vão além. As regras que eles quebram geralmente são muito significativas, como aplicar um remédio que pode matar ou salvar um paciente, como faz House, torturar pessoas a sangue frio, como Jack Bauer, ou mesmo enfiar sua Millenium Falcum num campo de asteroides arriscando não só o seu pescoço, mas o de todos os tripulantes da nave.
Os antissociais quebram as regras sem pensar, e em 90% da história eles só fazem isso parando apenas pra se preocupar com a moral e ética no tempo que sobra e pagando os preços de suas ações quando o roteiro deixa, mas lições de moral raramente vendem ingressos, então você já imagina o tempo reservado pra isso na história.
Os antissociais pagam pra ver, e sempre fazem coisas inusitadas por que são obsessivos. E geralmente, essas coisas são o que nós neuróticos achamos que é legal fazer, como ser um compositor de Jingles podre de rico que mora em Miami, como Charlie, ou mesmo ser um escritor autodestrutivo como Hank Moody, mas que pega todas as mulheres da cidade e tem um talento incontestável.
No entanto, os antissociais mais "legais" são aqueles que arcam com as consequências dos seus atos, o que os torna mais reais e "neuróticos" como nós. Por isto, geralmente, nas séries, que têm mais tempo pra contar a história, em algum momento eles sofrem as consequências de suas ações, por mais que tudo se conserte na próxima temporada. Charlie de Two and a Half Men (Warner) e House (Univesal) inclusive fazem terapia em algumas temporadas.

Enquanto que nos filmes, principalmente os thrillers, isto geralmente acontece no ato final, quando tudo dá errado antes do grande final onde tudo é consertado... Exceto no Coringa.

Os neuróticos obsessivos também possuem uma grande característica que é o uso exacerbado de um mecanismo de defesa chamado de "racionalização" para compensar suas deficiências emocionais. Eles substituem sentimentos por lógica sempre procurando uma "solução" para a tristeza, ou um argumento para suas ações.

Reprodução: O personagem Rick (de Rick and Morty) é o campeção da racionalização chegando inclusive a se transformar num Picles para não comparecer a uma sessão de terapia!
Por isso, estes personagens não são muito sensíveis, são "durões" e quase nunca pensam duas vezes. Nós, neuróticos normais sempre somos invadidos por uma nuvem de sentimentos confusos que muitas vezes não sabemos definir.
Porém, diferente do perverso, o neurótico obsessivo, antissocial ou badass não sabe exatamente o que quer. Ele "calcula" o que quer através da racionalização tentando ocultar seus sentimentos. latentes. Geralmente a ação do badass ou anti-herói é movida por um motivo que está alheio a dele. Leônidas, em 300, não foi enfrentar Xerxes por motivos pessoais, ele foi para defender Esparta. Por tanto um motivo racional.
E também, a magia do cinema e da arte de contar histórias em si nos poupa do sentimentalismo dos badass. Por que, como neuróticos, o peso de suas ações um dia vai cair sobre eles, exceto aqueles que morrem no final. Mas o que é realmente cativante num antissocial é que ele não guarda desejos. Ele vai atrás do objeto, mesmo que se frustre, morra ou erre, esta última opção geralmente não acontece, o que é um mérito da fantasia das histórias. Enquanto que, para nós o medo de errar geralmente impede a ação.


VIDA REAL:

Na vida real a física impõe reação para tudo que fazemos. Geralmente, nossos erros nos condicionam a ter noção das coisas e construir um super ego forte, este último é a estrutura psíquica que nos limita dentro da lei, da ética e da moral, estrutura essa que é meio falha nos badass.

Um erro também é a ilusão de que os antissociais são fascinantes todo o tempo.

A maioria das pessoas têm momentos em suas vidas em que fizeram algo de extraordinário, porém ninguém quebra regras, salva pessoas ou faz coisas interessantes 24h por dia. Aliás, no seriado de Jack Bauer, cada temporada é apenas um dia da vida do personagem. O que ele faz no resto do ano pode ser muito frustrante e entediante.

Mas há quem tente. Porém, os badass da vida real geralmente se dão mal, vivendo pouco ou mesmo acabando por mudar de atitude no fim das contas,

pois ninguém pode errar só de vez em quando apenas para o "roteiro" de sua vida se tornar mais interessante.

Por tanto, os antissociais residem no imaginário das pessoas, num ideal. E são admirados e provavelmente sempre existirão na literatura, teatro ou cinema porque, no fim das contas, eles são o que nós gostaríamos de ser, fazem o que gostaríamos de fazer e, o melhor de tudo, na maioria das vezes, se dão bem e/ou não pagam o preço de suas ações. -- Exceto o Coringa de 2019. Esse Coringa ninguém queria ser...

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