Coringa e a responsabilidade social

Foto (reprodução): O personagem Coringa caracterizado com sua tradicional maquiagem de palhaço.

No mundo corporativo o conceito de responsabilidade social é amplamente conhecido por se tratar de uma preocupação de uma instituição sobre o impacto da sua prática na realidade a sua volta. Se fala dessa responsabilidade quando a organização quer dizer que sua forma de lucrar não prejudica o mundo a sua volta, ou quando o faz, compensa a sociedade de alguma forma.

No filme Coringa (2019) vemos um personagem atormentado inserido num contexto não favorável para seu comprometimento e todas as instituições a volta dele, sejam públicas e privadas parecem jogar contra a sua situação. Desde a empresa em que ele trabalha até mesmo a instituição que lhe oferece tratamento parecem não estar preocupados ou não poderem fazer muita coisa em relação a responsabilidade social de suas práticas.

Porém, será que a produção pensou em responsabilidade social?

Numa época em que tiroteios em massa, ataques terroristas e demais tragédias provocadas por pessoas atormentadas ou com uma visão deturpada da sociedade, o longa protagonizado pelo premiado Joquin Phoenix de certa forma parece glorificar um reacionarismo violento justificado por jargões de Hollywood que, como eu já contestei aqui, reforçam, mesmo que de forma indireta, estereótipos negativos e até mentirosos sobre pessoas com transtornos mentais como o mito de que seriam pessoas violentas, ou que o trauma necessariamente seria base para a criminalidade ou qualquer forma de desvio de comportamento.
Foto (reprodução): O personagem coringa sem sua caracterização.

Será que na época em que vivemos uma história assim tem lugar no "entretenimento"?

Vilões de história em quadrinhos geralmente são um contraponto ao protagonista, uma forma de oposição que cria a ação da história fazendo com que o personagem tenha uma motivação para exercer as características que o tornam herói. Da mesma forma que um herói sem vilão,causaria uma estranheza, um vilão sem um herói pode ser algo difícil de imaginar.

Mesmo nas mais sombrias das histórias vemos vilões de quadrinhos cometerem atos abomináveis, no entanto o impacto gráfico que isto causa geralmente é amenizado. A morte é um plano de fundo, um discurso, uma notícia, uma fala, no entanto este filme do Coringa a mostra nua e de uma forma que, ao meu ver, parece colocada diante de um pedestal para ser contemplada como algo a ser louvado.

Jargões a parte, o que queremos dizer aqui é que oferecer um argumento tão enviesado como o deste roteiro sem um contraponto pode ser tão perigoso quanto divulgar uma carta de suicídio, ou um manifesto de um terrorista.

Qual o objetivo disso? Se for criar um vilão que possamos temer para mais um filme de super-herói será que vale a pena um possível dano causado pela mensagem que o filme passa quando exibido isolado, ou seja, sem o contexto do arquétipo do Batman ou das obras que virão a seguir? Talvez os críticos e a audiência veja esta narrativa de uma forma contextualizada, mas isso nem sempre acontece.

O filme parece pregar a violência como catarse para uma sociedade corrupta e injusta onde, aparentemente, apenas o caos poderia lavar a hipocrisia das autoridades que defendem uma falsa moralidade.
Foto (reprodução): O personagem coringa sorrindo.

Críticos têm comparado a história com clássicos como Táxi Driver ou até mesmo Clube da Luta, ou Laranja Mecânica.

Mesmos nesses filmes que possuem uma narrativa de decadência psicológica do protagonista há contrapontos onde se pode ver uma crítica, mesmo que velada, ao contexto do protagonista e uma dose de consequência de suas ações. Porém, ao menos num primeiro momento, não conseguimos identificar isso em Coringa sendo filme encerrado numa apoteose de louvor ao terror, a violência e ao caos.

No momento em que vivemos onde cada vez mais pessoas incompreendidas que não têm acesso a cuidados psicológicos se veem como párias da sociedade, o filme prega como catarse a violência podendo inclusive aqueles que possuem em seu íntimo uma admiração por esse tipo de "solução" para seus conflitos se sentirem motivados.
Salas de cinema nos EUA estão proibindo espectadores de irem as sessões usando máscaras ou maquiagem que cubra o rosto com medo de atiradores em massa.
Penso que este longa atraí por aquilo que é escatológico e tem o mesmo mérito da mídia pornográfica, do jornalismo sensacionalista e até mesmo dos políticos reacionários: provocar o que há de pior no ser humano tendo em vista lucrar. 

Acho que Hollywood precisa pensar em aplicar em suas corporações essa tal de "responsabilidade social" que tanto se fala. Mas a discussão sobre um filme tão denso e pesado não se resume aos pontos levantados nesse texto e no futuro certamente voltaremos a abordá-lo.

Não estamos aqui pregando alguma forma de censura ou repressão a arte.

Não sou contra a existência dessa obra, e deixando claro que, principalmente num mundo tão intolerante quanto o que vivemos calar a arte pode enveredar a sociedade por caminhos obscuros. O que critico aqui é um consumo descontextualizado dessa obra. Mesmo sendo ao meu ver um culto a escatologia moral e social, se contextualizada a obra pode gerar discussões produtivas, mas creio que fora deste enquadramento ela pode gerar preocupações legítimas como as das salas de cinema que estão tomando precauções durante a exibição do longa.

O fato é que, para o bem ou para o mau, e sem entrar aqui no mérito da qualidade artística da obra, certamente ainda iremos discutir muito sobre esta obra.

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