Conhecendo o Berço da Humanindade

Eu caminhando em direção a construção principal do santuário.
 
Estive recentemente no que se conhece como o Berço da Humanidade, o sítio paleontológico localizado cerca de 50 km a noroeste de Joanesburgo, na África do Sul e a experiência, é claro, me comoveu, desestabilizou certezas e me ofereceu uma espécie de contacto íntimo com o tempo profundo.

Esse território compreende uma vasta área (cerca de 47.000 hectares) que reúne cavernas calcárias, galerias subterrâneas e depósitos fossilíferos. Entre os sítios mais célebres está Sterkfontein, onde foram encontrados fósseis de Australopithecus Africanus (como o célebre “Mrs. Ples”) datados de cerca de 2,3 milhões de anos. Também dentro do complexo está o sítio de Malapa, onde se descobriu Australopithecus Sediba, considerado um possível elo de transição entre australopitecinos e formas posteriores de Homo. Juntos, esses locais compõem o conjunto seriado dos Sítios Fósseis Hominídeos da África do Sul, reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Mundial. 

Ali o presente parece suspenso: caminhar sobre rochas milenares, ver o interior de cavernas que guardararam ossadas que reescrevem nossa origem, tudo isso provoca uma espécie de assombro epistêmico. Há duas dimensões que, como psicólogo social e psicanalista, me atravessam nessa vivência:

1. A experiência do tempo e da alteridade radical

Frequentemente, em nosso cotidiano, vivemos comprimidos entre passado recente e futuro imediato: dores pessoais, tensões sociais, urgências da vida. Contudo, ao me deparar com os vestígios de hominídeos que viveram há milhões de anos, sou impelido a reconhecer uma alteridade radical: um outro humano (ou coisa parecida) cuja vida se perdeu no que chamamos de pre-história. Essa alteridade não é exotismo: é a raiz de nossa própria condição.

Em termos clínicos e sociais, isso promove um deslocamento do centro. Porque, ao reconhecer que somos herdeiros de uma genealogia que ultrapassa a narrativa familiar ou cultural imediata, somos convocados a cultivar uma humildade profunda diante da densidade temporal que nos contém. Em sessões, posso trazer esse gesto simbólico para o trabalho com a noção de “ancestralidade psíquica”: aquilo em mim que é mais antigo, mais subterrâneo, mais silencioso e, muitas vezes, mais resistente à linguagem.

Eu, dentro do museu, junto a um pôster que destaca a capa da revista National Geographic, que destaca a descoberta do sítio arqueológico. (Eu cheguei a ter essa revista em casa!)

Esse encontro também me recorda de que o sujeito, mesmo o indivíduo socializado no mundo moderno, não é apenas produto das pressões históricas recentes, mas portador de traços de uma matriz humana muito mais vasta. Isso reforça para mim a importância de acolher, no campo da clínica e da intervenção social, os silêncios, os traumas inscritos no corpo e no inconsciente que se fazem eco dessas camadas profundas.

2. Implicações para o trabalho social e clínico: responsabilidade e solidariedade

Estar fisicamente em um sítio como o Berço da Humanidade contém uma lição ética: somos continuadores, não autores absolutos. E isso implica responsabilidade não apenas em relação às gerações que virão, mas às urgências sociais de nosso tempo. A noção de que houve contextos de mortificação, de desaparecimento, de catástrofes ambientais nos “tempos muito antigos” convida a olhar para a atualidade com mais seriedade: desigualdade, degradação, desrespeito à diferença são perversões modernas, mas não fundadas fora da longa história humana.

No plano prático da psicologia social, esse senso de continuidade histórica pode ampliar minha escuta das comunidades, não como meros conjuntos de demandas, mas como sujeitos que carregam memórias (visíveis e invisíveis) que ultrapassam sua geração. Ajuda-me a deslocar o foco da intervenção de políticas puramente pragmáticas para uma abordagem que articule memória, dignidade e reparação simbólica.

Na clínica psicanalítica, essa experiência fortalece o gesto de não prescindir do silêncio e da “precipitação do inconsciente”, aquilo que está muito antes da narrativa consciente porque, ao final, o humano é aquilo que emerge (e desaparece) entre o consciente e o abismo do tempo. E é nesse limiar que se joga grande parte do trabalho analítico: acolher, com ética e generosidade, o inconsciente “ancestral” do sujeito.

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