Caso: A Valiosa Consciência do Senhor M

Quando se fala de psicologia o que eu gosto é de produzir artigos, mas há histórias que na minha opinião simplesmente não cabem neste formato. Além disso, eu gosto de escrever em primeira pessoa (vide o fato de já ter repetido a palavra "eu" duas vezes), e muitos grandes pensadores faziam isso, além de ser confortável fica tudo mais pessoal, como uma conversa com o leitor, além de ser de certa forma poético.

Eu atendo em vários lugares, um deles é uma instituição especializada da Proteção Especial da Assistência Social de um dos municípios da região sul fluminense. Lá, muitas vezes, trabalhamos com população em situação de rua.

E foi lá que eu conheci o curioso Senhor M.

Nessa instituição lidei com vários dos casos mais difíceis da minha carreira de psicólogo, mas o do Senhor M foi marcante por uma coisa em especial: o valor que o mesmo dava a sua própria vontade e a sua consciência.

Apesar de ser um psicólogo social, o olhar clínico muitas vezes atravessa a prática, afinal de contas não dá pra simplesmente ignorar um sintoma de um transtorno ou mesmo deixar de fazer uma intervenção mais pontual durante um atendimento, mesmo que ele seja psicossocial e não clínico.

E o Senhor M, apesar de ser vítima de um alcoolismo crônico, ao ponto de ficar em situação de rua, não teve sua mente comprometida pelo abuso da substância. No entanto, sua neuropatia atingiu seus músculos dificultando em muito sua habilidade de locomoção.

Mas, isso não o impedia de estar no controle da situação sempre que possível. 

Ele nunca aceitou ser conduzido a qualquer procedimento médico, ou simplesmente "obedecer" as recomendações feitas pela equipe sem que lhe fosse explicado detalhe por detalhe, com ele aprovando todos os pontos. Para o Senhor M as coisas tinham que acontecer do jeito dele, ou não aconteceriam. Muitas vezes depois de episódios de raiva inclusive agredindo verbalmente a equipe, o Senhor M ponderava e voltava atrás, isso porque concluía que nossa intervenção surtiria efeito em benefício próprio então ele ouvia a razão, que lhe murmurava no ouvido após o mesmo ficar horas e horas deitado em sua cama sem aceitar comer ou falar com ninguém.

Parecia que ele gostava de saber que estava no controle, mesmo quando ficava bem claro que intenção da equipe sempre era ajudá-lo. Mas ele era teimoso, e só aceitava depois que, muitas vezes, a equipe aceitava o seu não como definitivo.

O Senhor M nunca fez vínculos com outros usuários. Não aceitava participar dos eventos da instituição se recusando até mesmo a recusar os agrados culinários de certas datas comemorativas como Páscoa, Natal e etc. Ele não gostava de se misturar e não se via como um usuário daquela instituição, apenas alguém que estava de passagem.

A única coisa que ele tinha era o seu Benefício de Prestação Continuada, o que lhe permitia ter acesso a certos "regalias" e a conseguir alguns favores de outros usuários, como por exemplo, a posse de um pequeno rádio FM, aparelho que se tornara uma febre certa época na instituição.

Consegui estabelecer um vínculo com o Senhor M justamente oferecendo o que ele parecia demandar tanto: respeito a sua vontade. 

Eu encarava com respeito as decisões dele, mesmo quando elas não faziam sentido ou podiam, de certa forma, prejudicá-lo. Toda vez que precisava fazer uma intervenção com ele, eu perguntava se ele estava ciente do que estava acontecendo, e se concordava com aquilo. Isso dava ao usuário o controle de si mesmo. Um controle que parecia haver perdido há muito tempo.

Ao atuar na área social muitas vezes devido as debilidades do usuário já vi muitos profissionais presumirem que o usuário não entende o que está acontecendo na própria vida e agem tomando decisões no lugar da pessoa, principalmente quando se trata de usuários com transtorno mental ou mesmo que abusam de substâncias. O que acaba tirando o sujeito do controle de sua própria vida.

Mas com o tempo o próprio Senhor M passou a me procurar pedindo orientações sobre certos assuntos, além de, muitas vezes, pedir para que eu o acompanhasse em certos procedimentos como consultas psiquiátricas e semelhantes, o que eu fazia sempre que podia. Mas muitas vezes tentava mobilizar o usuário trabalhando com ele a necessidade que o mesmo possuía de ajuda, e que nem sempre eu estaria por lá para apoiá-lo, e por outro lado tentando trabalhar com a equipe para que visse além do mau humor do Senhor M e entendesse a necessidade que o mesmo possuía de estar no controle de si mesmo. Porque afinal de contas, estar no controle da própria vida é uma demanda extremamente razoável.

E que mau humor possuía o Senhor M...

Sempre que se sentia fragilizado ele se tornava hostil. Seu corpo mal possuía desenvoltura para mantê-lo em pé, mas sua mente e língua estavam sempre afiadas. Toda vez que ele via um erro nos procedimentos da instituição ele estava sempre ali, pronto para apontá-lo o que dificultava a sensibilização do resto da equipe à causa dele. Mas ele não ficava atento só a erros de procedimento, mas também a outras falhas como desvios de caráter de outros usuários e chegava até mesmo a, ironicamente, julgar os vícios e doenças de outros.

Mas nem sempre ele estava de mau humor. O Senhor M gostava de samba, e muitas vezes eu o vi cantarolando pelos corredores da instituição. Sempre fazia menção ao bairro onde morava e como passava noites a fio com os amigos fazendo e apreciando a boa música, comida e a bebida, é claro.

Mas o Senhor M ficou ainda mais doente. E precisou ser conduzido a um hospital para maiores cuidados. Mesmo resistente, mesmo de mau humor, ele ouviu a razão e aceitou ser internado, mas isso aconteceu depois de muita negociação. Lá chegando ele foi avaliado por médicos interessados em sua patologia, mas pouco interessados em quem ele era ou deixaria de ser.

O Senhor M estava lá, mas por alguns momentos parecia que o corpo ali presente não era dele. Alguns internos do hospital estavam acompanhando o médico que o atendia, e ficaram um pouco empolgados com a doença do usuário. Cercaram-no e começaram a cutucá-lo de várias formas. Ele não apresentou resistência, afinal de contas era um procedimento médico e ele tinha consciência de que aqueles garotos apenas estavam fazendo o seu trabalho.

Foi então que, com uma estranha empolgação um dos internos fez uma pergunta e o médico respondeu a ele "o que você acha? Vá em frente, aqui é o momento de errar". Observei bastante o Senhor M, mas o mesmo continuava apático. Nem mesmo o seu mau humor estava presente. Depois pensei bem sobre o que o médico queria dizer com aquela expressão. Será que ele dizia que a hora de errar era no estágio? Ou talvez ele estava falando que a hora de errar era naquele momento, pois o caso do Senhor M já havia recebido uma não dita "sentença de morte"? 

O Senhor M provavelmente não sairia do hospital vivo, era o que aqueles jovens empolgados diziam em seus termos complexos.

Na ausência de reação do usuário decidi ficar calado e não causar uma situação desagradável. Mas aí, o médico e os internos começaram a prescrever as medicações que seriam administradas ao Senhor M durante a internação. Dentre eles três antipsicóticos.

Como eu disse ali no começo, o Senhor M não tinha, até onde a investigação psiquiátrica e psicológica podia detectar, transtorno mental ou comorbidade psiquiátrica advinda do abuso do álcool. Ele estava consciente, e muito consciente diga-se de passagem, das coisas que aconteciam com ele. Não era sem motivo que, mesmo sendo teimoso, voltou atrás e aceitou ser internado. Ele tinha consciência de que era um alcoólatra, inclusive participava de um Grupo do AA e admitia que não conseguia parar de beber. Ele estava ali enquanto ser humano, não era apenas um corpo a ser dissecado. E o médico estava prestes a tirar quem sabe os últimos dias que o Senhor M possuía.

Questionei o procedimento. E informei ao médico que o usuário fazia acompanhamento psiquiátrico e que ele não era esquizofrênico, não fazendo uso de nenhuma daquelas medicações. O Senhor M prontamente perguntou para quê eram aqueles remédios e o médico respondeu friamente "para o senhor dormir e não ficar nervoso". Protestei mais, afinal de contas o Senhor M podia ser alcoólatra, podia não ter o melhor dos humores, mas ele estava ali, quieto, desde quando chegou ao hospital. Sendo cutucado, arrastado de um lado pra outro e tudo sem reclamar, exceto, é claro, quando estava a sós comigo esperando algum procedimento. Aí sim, ele me perguntava o que estava acontecendo e quais procedimentos viriam a seguir.

O Senhor M não tinha medo de perder a saúde, 

ele não tinha medo nem mesmo de perder a vida, verbalizava isso pra quem quisesse ouvir. Ele não iria deixar de ser quem era por conta de uma doença, nem mesmo abrir mão de seus valores, por mais distorcidos e prejudiciais a si mesmos que eles fossem, por que eles eram parte de sua alma. E após receber a notícia de que tinha uma doença grave, em seu mau humor constante e coerente ele chegava até mesmo dizer que nossos próximos atendimentos seriam no cemitério. Mas se havia uma coisa pela qual ele brigava era por estar no controle da situação, no comando de si mesmo. Parecia que o maior bem que ele possuía era a sua valiosa consciência.

Mas... Meus protestos foram em vão e o médico escreveu todos aqueles nomes no prontuário. O Senhor M fora internado e eu já temi que ele "morreria mais cedo", já que sua consciência seria tirada antes mesmo que a doença o fizesse. Ainda tentei argumentar com a enfermeira, conversei com médicos amigos meus e muitos disseram que eu deveria insistir no caso e falar com o médico responsável por ele durante a internação.

No entanto, para minha felicidade, poucos dias depois eu visitei o Senhor M. E ele estava lá com um péssimo humor, julgando os procedimentos das enfermeiras e apontando todos os defeitos do hospital rotineiramente. Fiquei preocupado e procurei uma enfermeira para saber se ele estava sendo colaborativo com os profissionais do hospital, mas ela relatou que o Senhor M era meio rabugento, mas era tranquilo. O mesmo passou por vários procedimentos durante a minha visita, e parecia mais interessado nos acontecimentos recentes sobre política local e sobre a instituição do que na enfermeira que chegou, inclusive, a lhe administrar um medicamento injetável. 

Ele estava bem, estava consciente inclusive de que o Flamengo tinha sido goleado, disse que tinha ouvido o jogo porque havia uma TV no fim do corredor. E, até o momento em que eu escrevo isso, acredito que ele esteja lá alerta, e se agarrando na única coisa que ele realmente dá valor: a sua própria vontade.

NOTA DE 22/01/2021: O Senhor M melhorou e ficou na instituição por mais algum tempo. Mas a equipe conseguiu sensibilizar sua família e ele foi acolhido por um parente. Ele viveu mais alguns anos com ele, e depois faleceu. Cheguei a visitá-lo várias vezes na casa desse parente e ele relatou que vida lá era boa. Ele tinha uma pequena kitnet nos fundos da casa, ele era independente (apesar de não conseguir andar mais sozinho) e lhe serviam comida boa. Ele tinha uma TV e um rádio. Disse que não precisava de muito mais. Lembro de vê-lo sorrir como em poucas vezes.

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