Caso: Ressocializando um sociopata.

NOTA: Nomes e fatos podem ter sido alterados para resguardar a identidade das pessoas e instituições envolvidas.

F. era um homem de seus 30 e poucos anos que nunca conseguira se adaptar a sociedade. Possuía vínculos familiares gravemente rompidos e, ainda por cima, fazia uso abusivo de múltiplas drogas, principalmente cocaína.

Mas, ao longo de nossos atendimentos eu fui percebendo que F. tinha uma extrema dificuldade de enxergar as necessidades dos outros, sua empatia era ínfima. Com o tempo conseguimos estabelecer um vínculo de trabalho, mas que só era efetivo no que era conveniente a ele, e com esse ganho de confiança eu logo percebi que F. tinha sérios traços de uma personalidade antissocial, ou seja, ele provavelmente era um sociopata.

F. não lidava bem com situações de stress, sempre reagindo com violência. Ameaçava as pessoas de morte ou ia para a agressão de fato, ele dizia que não tinha medo de ir para cadeia, o que é um discurso bem comum em egressos do sistema penitenciário, mas a forma como ele dizia isso me parecia preocupante. Em alguns atendimentos ele tentou me confessar crimes do passado, mas eu nunca quis dar abertura para esse tipo de conversa, afinal de contas nosso atendimento era psicossocial, e não terapêutico e na época eu acreditava que essa era uma forma de intimidação com o objetivo de conseguir um tratamento diferenciado.

A visão do psicólogo social tem que englobar o sujeito inserido na sociedade, ou seja, vínculos sociais familiares, na comunidade, institucionais e etc. Falamos do sujeito, sim, mas o foco são suas relações com o mundo. Sempre procuramos trabalhar a autonomia, tangendo a psicoeducação para que o mesmo tenha capacidade de se organizar e dar seguimento a sua vida.

E mesmo ciente das crises de fúria de F. e de sua falta de empatia por outros seres humanos eu sempre o acompanhava em consultas médicas porque ele não costumava lidar bem com esse tipo de situação. Principalmente se pensarmos no quão precário pode ser o atendimento ao público numa instituição como um hospital do SUS, por exemplo. Além disso havia o fato de que, após episódios desagradáveis, em algumas instituições ele fora proibido de ser atendido desacompanhado.

Mas eu ia sozinho com F., muitas vezes a pé, desprotegido e consciente do que ele era capaz de fazer caso se irritasse.

Logo, por alguns meses, eu tentei trabalhar a autonomia e a organização de F., mesmo sabendo que ele provavelmente tinha uma personalidade antissocial. Mas e daí? Era o meu trabalho e ele, independente de seus transtornos ou desvios de conduta, ou até mesmo traços de personalidade, tinha direito a conviver em sociedade desde que não colocasse ele e outras pessoas em risco.

Aprendi com o tempo que usar argumentos como o que é "certo e errado", ou a dita "moral" não funcionaria com F. Ele só me compreendia quando eu explicava as vantagens e as desvantagens (para ele)  de determinada ação.

Com o tempo os médicos detectaram que F. era elegível para receber o auxílio doença, e que o mesmo, devido as comorbidades do abuso de drogas, não tinha mais condições de trabalhar. E isso o deixou muito ansioso, pois para ele seria muito bom "se aposentar".

Isso o deixou muito estressado, e suas crises de fúria se tornavam cada vez mais frequentes. Até que um dia ele chegou na minha sala solicitando atendimento e me pediu para que eu lhe explicasse por que "não seria vantagem matar o médico do INSS caso ele não passasse na perícia".

Esse foi um papo interessante.

Mas no fim das contas, F. ficou ciente de que não era vantagem cometer um assassinato. Mesmo que ele tivesse argumentos sólidos como a conhecida impunidade do nosso país, a incapacidade de investigação da polícia e mesmo as "penas brandas" (segundo ele próprio) que ele poderia sofrer por conta de ser um usuário de drogas em tratamento e fazer uso de medicações psiquiátricas.

No fim do atendimento eu consegui convencê-lo de que valia mais a pena entrar com um recurso via defensoria pública do que assassinar um médico, já que ele não teria o benefício do mesmo jeito e ainda por cima poderia passar alguns anos na prisão, o que ele achou desagradável.

F. sempre me procurava, e em um dos nossos últimos atendimentos ele disse que, de todas as pessoas que o atenderam só eu o "entendia de verdade". Ou seria eu apenas aquele que fez o diagnóstico correto?

Após algumas semanas de muito stress, F. fez a perícia e foi aprovado. Então ele perdeu o interesse pelo acompanhamento psicossocial. De posso do benefício e acabou fazendo vínculo com sua família extensa em outra cidade, mudando-se para lá. Nunca mais tive notícias.

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