O problema de tentar explicar por que a meritocracia não funciona


Num dos meus empregos trabalho com população em situação de rua numa instituição de acolhimento especializado. O principal foco é a ressocialização desses indivíduos fragilizados por vínculos extremamente precários, que muitas vezes fazem abuso de substâncias e/ou sofrem de transtornos mentais.

Uma das nossas ferramentas de trabalho, além do atendimento psicossocial é o grupo de convivência, previsto nas normativas do funcionamento dessa instituição. Os grupos acontecem semanalmente e discutimos diversos assuntos.

No começo, falávamos sobre a rotina da instituição e incentivávamos o bom convívio através da criação de vínculos entre os usuários. Hoje abordamos temas mais complexos.

Afinal de contas, muitos dos usuários que participam deste grupo estão ressocializados e não residem mais na instituição, mas participam de projetos vinculados a ela. Foi então que numa semana decidi falar sobre meritocracia.

Após assistirmos alguns vídeos sobre o assunto, abri o espaço para debate numa roda de conversa para receber o feedback na forma da opinião dos usuários sobre o assunto e assim construir uma dinâmica em volta do mesmo.

Na minha inocência eu pensava que derrubar o mito da meritocracia com ex-moradores de rua seria algo fácil, mas infelizmente me surpreendi.

O problema é que, acabei descobrindo da pior forma possível que o conceito de justiça social não é bem aceito, mesmo entre os mais pobres. 

Afinal de contas, quando você diz que o mundo não é justo e que talvez as conquistas de algumas pessoas sejam fruto da sorte como um "bom berço" ou de acesso a um recurso que veio por acaso, as pessoas entram automaticamente no modo defensivo.

Isto porque quando você desconstrói o conceito de "mérito", você pode estar ameaçando a própria história do sujeito.

Todos nós temos nossas vitórias, conquistas pessoais que fazem parte da nossa história e definem quem nós somos. 

E quando discutimos meritocracia, apesar da obviedade de estarmos falando das grandes fortunas, e do acumulo de poder de pouquíssimas pessoas, corremos o risco de ameaçar as conquistas pessoais de nossos interlocutores.

Acredito que é por isso que temos uma classe média que mesmo fazendo parte da massa explorada defende tanto o status quo.

No fim das contas, depois de uma discussão riquíssima consegui explicar aos meus usuários que ser contra a ideia de "meritocracia" não invalidava as conquistas pessoais deles. 

E que o conceito se refere a uma visão muito mais ampla e sistêmica da sociedade. No fim das contas, eles acabaram relatando a importância das instituições e políticas sociais para as suas conquistas e para que outras pessoas conseguissem o mesmo.

Isso tudo sem descartar o mérito das exceções, como o caso de pessoas que tinham tudo para dar errado e venceram na vida.

Afinal de contas, é possível sim vencer mesmo que a maioria das variáveis estejam contra você. Mas o fato de poucos conseguirem isso não garante que os que não chegaram lá sejam rotulados com demérito.

Pois numa democracia as chances precisam ser iguais para todos e é óbvio que na atual conjuntura existe uma disparidade enorme de classes, raças e até mesmo de gênero.

É possível vencer sozinho, e quem chega a vitória sozinho merece respeito e crédito. No entanto, isso não deveria nos fazer desprezar ou esquecer aqueles que não chegarão lá sem ajuda.

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