Freud Explica por que La Casa de Papel é viciante mas é ruim


Lá Casa de Papel (2017) é uma série espanhola que tem cativado o público no mundo inteiro, principalmente depois de sua estréia pelo serviço de streaming Netflix. É uma história de ação que conta sobre um assalto a casa da moeda espanhola.

Dentre os méritos da produção estão o fato de ser uma das primeiras séries de língua espanhola a dominar os índices de audiência do serviço de streaming decentralizando a hegemonia das séries de língua inglesa, o que abre os horizontes para produções nacionais e em outros países.

Mas por que ela tem tido tanto êxito em prender o público? E por que isso não necessariamente a torna uma boa série?

Antes que os leitores psicólogos (e entusiastas da área) me crucifiquem ao ler este texto, já vou avisando que apesar de muitas vezes eu dar a entender que aqui versamos apenas sobre psicanálise - afinal de contas o título dessa série de textos se chamar "Freud Explica" - iremos usar argumentos que bebem da água das neurociências, do cognitivismo e do behavirorismo por que afinal isso é sobretudo um blog de psicologia.

Portanto se você é um psicanalista ortodoxo ou simpatiza com essa abordagem, paciência.

Primeiro precisamos entender o que é o "Storytelling Fast Food".

Quando falamos de "Fast Food" a primeira coisa que você deve pensar deve ser num restaurante de franquia como o MacDonald's que vende comida barata e rápida.


Esse tipo de comida é feita de forma industrial, ou seja em grande volume e de forma metódica. E em seus ingredientes, predominantemente, temos gordura, sal e açúcar, que são elementos culinários sabidamente conhecidos pela neurociência por estimular prazer gastronômico de forma barata e pra alguns cientistas, com o efeito semelhante de algumas drogas ilícitas.

Isso porque a indústria alimentícia, como qualquer indústria, visa lucro e isso vem com fatores como diminuição dos custos de produção e alto índice de recompra de sua marca.

Portanto ter um produto de produção barata e fácil de vender e que "vicie" o público é o objetivo desse tipo de comércio. E isso também vem acontecendo no universo da ficção.

E é aí que chegamos na parte polêmica:

Ninguém come comida boa o tempo todo, e se você tem uma vida razoavelmente saudável eu duvido muito que qualquer nutricionista de proíba de almoçar um sanduíche de vez em quando. Mas já se diz, por exemplo, que no Japão as pessoas têm uma alimentação mais saudável por conta da maior oferta de comida desse tipo em detrimento as comidas rápidas e pouco saudáveis. Mas isso é assunto pra outro papo.

Assim como a indústria alimentícia, a indústria do Storytelling também pesquisa ferrenhamente e bebe da psicologia para saber o que "vicia" mais o público.

E já existe uma vasta literatura sobre técnicas de escrita de roteiros que se usam das descobertas da psicologia e de ciências correlatas para criar histórias que sejam fáceis de vender e viciantes.

Mas como funciona essa estrutura narrativa engessada que estamos criticando aqui, que é ao mesmo tempo viciante, mas pouco inovadora?

Um dos segredos desse tipo de narrativa é manter a tensão.

Nada deixa o cérebro humano mais focado do que a impressão de que há um perigo eminente. É por isso que muitos filmes se usam de técnicas como a contagem regressiva, onde o tempo para resolver um problema é limitado.

E por que não falar do mais clássico clichê que dá origem ao termo cliffhanger ou "cliffhanger ending" onde uma cena ou episódio costuma acabar com o protagonista em risco como por exemplo, se traduzirmos literalmente o termo, pendurado em um penhasco?

Mas o artifício de roteiro que eu mais tenho visto é o ritmo narrativo desenfreado.


A primeira série em que eu reparei isso foi House. Eu desconheço a técnica exata, mas em minha análise parece que temos cenas de duração curta em que há mudança do clima emocional da narrativa seguido de uma resolução dramática para o conflito.

Segundo Syd Field, cena é a menor unidade narrativa de uma história. Ela necessariamente precisa ter conflito (seja ele interno ou externo) e levar a história pra frente, para o próximo passo. A forma mais clara de perceber isso são nas clássicas histórias de detetive onde cada "cena" revela uma nova pista e leva o personagem adiante.

Chinatown é considerado o melhor roteiro da história do cinema (pelo menos pelos autores que li) e é justamente uma história de detetive onde nenhuma cena foge dessa regra.

O ritmo imposto também é uma forma de condicionamento do público que, exposto sistematicamente a estímulos emocionais e/ou plot-twists se vê preso no ritmo da série, indo de uma cena pra outra, de um ato para outro e de um episódio para outro sem conseguir parar de assistir.

No entanto, na literatura clássica as cenas são exageradamente longas e o conflito não necessariamente fica claro. Isso quando, muitas vezes, ele não existe.

Isso por que, correndo risco de ser radical, arte de verdade é um registro da emoção humana, do tempo, cultura ou sociedade em que vivemos ou de uma filosofia/ideia.

Portanto, grandes obras literárias não necessariamente têm a mais básicas das estruturas como até mesmo o mais básico, como um conflito que move o personagem.

Isso torna a boa literatura ou o bom storytelling pouco comercial, pois pode ser difícil de consumir.

Não estou sendo moralista ou ser alguma espécie de defensor "do bom Storytelling".

Nunca li Dostoiévski, e quando era adolescente odiava os livros que nos obrigavam a ler como qualquer jovem do ensino médio e sou até hoje fã da série House, que para mim, tem dentre seus méritos, usar tão bem as técnicas narrativas que é capaz de prender a audiência por oito temporadas usando descaradamente A MESMA estrutura narrativa em quase todos os seus episódios.

Mas isso não torna House, Suits, Scandall, Billions ou La Casa de Papel boa arte.

Isto por que a história é feita de uma sequência de recortes que leva de um plot twist a outro.

Não estamos dizendo que não há uma tentativa de aprofundamento dos personagens, mas quando isso acontece é sempre para justificar ou dar seguimento a uma reviravolta sistemática que a série apresenta. Não há uma real dramaticidade.

Não. Isso não tira o mérito do sucesso da série, mas nos faz refletir sobre os rumos tomados pela indústria da ficção no futuro.

No entanto, retornando ao paralelo que fizemos no começo com o fast-food não faz mal nenhum tomar um milk shake de vez em quando, desde que na hora de se alimentar de consumir arte de verdade você saiba que boas histórias não são feitas apenas de açúcar, gorduras e sal.

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