Watchmen e o reacionarismo anômico


Anomia é um transtorno geralmente atribuído a pessoas que têm muita dificuldade para se adaptar as constantes mudanças na sociedade. Pessoas com este transtorno tem dificuldades em compreender as relações sociais atravessadas por mudanças na cultura vigente como quebra de paradigmas ou arquétipos.

Já o reacionário é aquele que é contra mudanças no sistema político, ou seja, aquele que reage a abalos ou transformações na estrutura do poder.

É possível dizer que no Brasil esses dois termos andam de mãos dadas em 2019.

Mas o que a série Watchmen da HBO, que na data da publicação deste artigo está em seu segundo episódio,  tem a ver com esses temas?

Primeiramente a narrativa segue o verdadeiro legado deixado pela novela gráfica Watchmen, uma história em quadrinhos que ganhou prêmios de literatura inglesa e que foi adaptada para os cinemas em 2009 sem chamar tanta atenção quanto o material original, mas que ainda assim tem seu lugar entre os filmes que compuseram o início da onda dos super heróis no cinema.

Watchmen, em resumo, foi a primeira história a pensar como seriam os super heróis se eles fossem gente como a gente... No sentido mais perverso possível.

Os personagens dessa "liga da justiça subvertida" proposta por Alan Moore são falhos e até mesmo monstruosos, demonstrando aquele princípio de que o poder - mesmo que seja a mera habilidade de socar pessoas na rua - pode revelar o pior do ser humano.

Nesta história vemos uma conspiração onde heróis reformados devido a uma lei que proibiu a prática de sair por aí fantasiado fazendo justiça com as próprias mãos estão sendo assassinados. Sem dar spoilers, tudo desemboca para uma grande conspiração onde um grande crime é cometido de forma "oculta" para manter a paz na humanidade ao custo de milhões de vidas inocentes.

E é nesse contexto que existe um personagem chamado Rorschach, um detetive encapuzado e paranoico, mas que sabe de toda a verdade!

Apesar de protagonizar boa parte da história original, o personagem que descobre a verdade sobre o que aconteceu ao longo da trama é retratado como traumatizado, desajustado socialmente e preconceituoso. Mas isso é um detalhe de pano de fundo que passou por muitos anos sem comentário ou análise até que chegamos na era da polarização e a HBO decidiu atualizar a trama política deste universo.

Na série, que se passa depois dos eventos dos quadrinhos, um grupo claramente baseado na Ku Klux Klan, uma seita supremacista branca com histórico de assassinato de negros, acaba por substituir seu capuz branco em forma de cone pela máscara do herói Rorschach o que tem levantado polêmica entre alguns fãs da história.

O porém é que esses vilões não sabem é que eles estão certos sobre a conspiração, mas errados sobre os culpados por ela!

Na série, até agora (episódio 02 da primeira temporada!), se dá a entender que esse grupo de supremacistas pensa que o culpado pela conspiração é o governo ou até mesmo as minorias que insiste em atacar. Porém o que eles não sabem é que quem causou toda tragédia vista na história original é um seleto grupo de poderosos que vivem encastelados em suas mansões e regados a fetiches caros. Isso te soa familiar?

No Brasil de 2019 temos uma classe média preconceituosa que ascendeu recentemente ao nível sócio econômico menos pior que a pobreza e por isso pensa que ocupa o mesmo local moral que os ricos, ou que tem uma chance real de ocupar esse lugar.

Aí, diante da primeira crise política que surge, a classe média se revolta contra os miseráveis e até contra si mesma, critica o governo e apoia discursos radicais ansiando por um reconhecimento da sua posição que acreditam ser mérito seu, não de políticas sociais que impulsionaram a economia.

Vamos dizer que assim como os Rorschach da série, a classe média consegue sentir que algo está errado, mas não tem capacidade de entender a mensagem!

Pra classe média brasileira o que falta é consciência de classe para entender que o culpado por sua situação não são as minorias, ou os direitos sociais, mas sim a distribuição de renda que é escandalosamente desproporcional.


Essa comparação com a série da HBO exige esforço, mas podemos encarar Ozymandias como um avatar dessa classe rica que comanda "por trás das cortinas" a nossa sociedade, e que o reacionarismo violento dos Rorschach é uma caricatura da classe média que, sem consciência de classe, elenca um alvo para o seu ódio de forma enviesada.

Lembrando que realmente existem grupos de supremacistas brancos no mundo que acreditam num "levante dos negros" contra eles ou coisa do tipo, podemos citar o que acontece na África do Sul, por exemplo.

No entanto, é preciso saber quais rumos a série vai tomar.

Afinal de contas, isso é Watchmen, e não existem mocinhos e bandidos nesse mundo, mas sim seres humanos cheios de defeitos e traumas com alguns vislumbres raros de nobreza. Já nesse segundo episódio se dá a entender que há algum conhecimento sobre a "verdade" na causa dos supremacistas, já que muito provavelmente eles têm acesso ao diário do Rorschach da história original que relata o que verdadeiramente aconteceu, ao mesmo tempo que, até agora, pode-se interpretar que eles só usam essa "desculpa" pra perpetuar o preconceito violento que já existia no lugar.

Precisamos lembrar que a história se passa em Tulsa, nos EUA, local onde aconteceu um massacre do povo negro por parte da KKK. Seria o diário de Rorschach apenas mais um argumento para justificar o que não tem justificativa?

A história pode rumar para conflitos interessantes, ou apoiar, mesmo que sem querer, ideologias bizarras, como foi o caso do Coringa de Joaquim Phoenix. No entanto, precisamos admitir que, mesmo se tratando de um tema sensível, a trama chama atenção justamente por se arriscar ao misturar uma possível crítica social bem construída com entretenimento.

Por favor, não nos decepcione de novo HBO!

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