A moralização da assistência social ou "A gente não quer só comida"

Descrição da imagem: foto de uma mulher negra segurando um violino.

Neste novembro completei 10 anos trabalhando com políticas públicas e olhando para trás infelizmente não temos muito o que comemorar. Isso porque apesar de termos implementado programas muito importantes e bem estruturados talvez o maior desafio não foi vencido: a mudança de cultura dos gestores e da classe média em relação a benefícios assistencias.

Não é em vão que vemos em pleno 2021, no meio da maior crise sanitária que o nosso país já viu, programas fundamentais como o Bolsa Família serem destruídos sem piedade sob os aplausos dos desinformados e a comemoração dos políticos que aceitaram sem escrúpulos embolsar vidas brasileiras para apoiar esse projeto funesto.

Trabalhando boa parte desses anos como psicólogo dentro de serviços de assistência social eu tenho que dizer que ainda hoje os gestores veem essas políticas do ponto de vista assistencialista.

O assistencialismo é a caridade, é a sopa na rua, é a cesta básica.

Não que ações como essas não sejam necessárias, ainda mais num país que passa fome. Mas políticas de assistência são fundamentais por fomentarem um apoio sem custo, um apoio que dá independência para o assistido. Os políticos geralmente não estão interessados em benefícios assistenciais que não veiculem o sujeito a uma dependência do estado, ou que minimamente deem liberdade do assistido de usar esse apoio conforme a conveniência do mesmo.

Muitos autores e profissionais de psicologia pregam um suposto respeito a subjetividade de forma as vezes até cultista, porém mesmo autores de outras áreas que não a psicologia falam disso, mas parece que na hora de implementar as políticas preconceitos bizarros como o racismo interferem na linha de raciocínio dessas pessoas. 

Isso porque o racismo é o exemplo claro de quando o sujeito não é apto pra gerir a sua vida sem um "senhor" que controle seu corpo, ou então é o próprio racismo que faz com que as pessoas pensem que a moral do preto pobre é pecaminosa ou mesmo de menor qualidade do que aquela pessoa que está no poder ou mesmo que transita pela classe média. Então por isso eles não podem ter acesso livre a dinheiro do Estado.

Afinal de contas, só pensamentos macabros como o racismo permitem não enxergar as pessoas em condições diferentes da nossa como semelhantes.

É comum na classe média a piada de que a conta de internet é tão importante quanto as contas de luz e de água, porém quando se trata de um pobre que recebe ajuda alheia, o tratamento dispensável para o acesso a internet é visto com outros olhos. E isso vale para qualquer forma de desenvolvimento intelectual, acesso a cultura, arte ou bens de consumo. O pobre que recebe ajuda pra comer não pode ter outras vontades.

Há muito tempo circulava na internet um vídeo de uma senhora que dizia que o "Bolsa Família não dava nem pra comprar uma calça jeans", porém é claro que quando não falamos de alimentar crianças ou assistir pessoas que não possam se cuidar sozinhas, mas fora desse contexto, pensar que uma roupa pode fornecer a auto estima necessária para se conseguir o emprego, animar-se para ir para escola ou até mesmo não adoecer é considerado um pensamento não aceitável se você recebe um benefício do governo. Por quê?

Vivemos numa sociedade onde diariamente somos ensinados que o bem-estar social está ligado ao consumo,

e pessoas pobres estão sendo bombardeadas também por propagandas, séries e filmes que impõem ideais de consumo que passam a fazer parte de seu imaginário, e se tornam objetos de desejo ou até mesmo partes constituintes de uma personalidade saudável.

Então, já dizia a letra dos Titãs que até hoje é estudada em muitas aulas de psicanálise pelo Brasil "a gente não quer só comida, a gente quer comida diversão e arte", e por que não incluir nessa lista poder aquisitivo livre para nos sentir humanos diante de uma sociedade onde quem não consome se vê consumido até o ponto da inexistência.

Comentários

  1. Tantas verdades: falar que o pobre não saberá cuidar dos recursos,(o assistencialismo q dá coisas, mas impede o acesso) ; a prepotência em achar que sabe o que é melhor pro pobre, e o impedir de escolher; negar outros pães ( há fome de comida, cultura, educação,lazer...) e embolsam os recursos públicos, livres e descaradamente...que país é este???

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