Wagner, Mozart e MV Bill - O soldado que fica

 

Captura de tela do clipe "O soldado que fica" de MV Bill.

Toda vez que usamos uma referência eurocêntrica para exaltar uma obra que foge do conceito estético colonialista talvez estejamos correndo o risco de diminuir um pouco seu prestígio. Isso porque usar essa suposta referência civilizatória para medir uma arte diverge dessa medida é algo que não tem muita lógica.

Porém, na nossa nação civilizada, ou melhor, colonizada, infelizmente fomos condicionados a pensar que o que é cultura é aquilo que beira o erudito, portanto, aquilo que é europeu. Não é em vão que governos fascistas tentam resgatar essa culto estético que remete ao norte, exaltando por exemplo óperas de Wagner e conceitos plásticos iluministas.

Portanto, a comparação que fazemos aqui não é qualitativa, mas sim um recurso de linguagem para expor ao leitor nossa opinião. 

Então minha visão não é uma tentativa de encaixar o rap no conceito erudito, mas assim como fizeram Dicró, Bezerra da Silva e Moreira em seu samba "Ópera do Morro" desafiar esse conceito e quem sabe até mesmo colocá-lo abaixo da cultura da rua, das massas. Da vivência real do Brasileiro pobre e preto.

Tendo toda essa introdução em vista, preciso te contar que eu era um adolescente muito chato. Com doze, treze anos de idade eu ouvia música clássica e lia peças de Shakespeare. Júlio César foi o segundo livro que li na vida. Eu ainda era um garoto negro da periferia, mas tive acessos educacionais que muita gente não teve no mesmo CEP. Depois disso, acabei me tornando roqueiro por conta de umas más influências da classe média e tenho que confessar que fui muito preconceituoso com artes como o rap e o funk nessa época.

Portanto eu fui conhecer obras como a de MV Bill agora, depois de velho. Talvez eu tenha precisado sair da periferia para entendê-la em sua plenitude.

Conheço Mozart, conheço Wagner, eu estudei música clássica, piano e violão. E por isso julgo ter autoridade pra dizer que esse preconceito burro contra o rap nos priva de conhecer obras fantásticas como "O Soldado Que Fica", música de MV Bill que acabei conhecendo de forma aleatória ao escutar umas playlists em aplicativos de música.

A melodia me impactou logo na introdução, que assim como a abertura de uma ópera cria um clima épico para apresentação de seus heróis mitológicos. O soldado, protagonista encarnado pela voz de MV Bill emprega uma esterilidade melancólica de alguém que está diante do abismo, mas que não teme a queda. Alguém que conhece seu destino, como se o mesmo tivesse sido cantado pelos orixás ou traduzindo para uma linguagem mais pobre, pelos oráculos gregos assim como nas obras de Platão, Sófocles e outros.

Consumi essa música entre arrepios, nas sacudidas do ônibus e logo que tive a oportunidade posterior de descobrir que há um clipe igualmente fantástico dessa música. E o que me chocou é que não tinha imaginado que o protagonista era um adolescente. 

Isso é extremamente cruel, mas realista.

O realismo se dá na minha experiência porque já tive a oportunidade de entrevistar jovens daquela mesma idade do ator do clipe e que tinham a mesma maturidade da letra da música, uma maturidade forçada que vem do sofrimento, da sobrevivência, da violência.

Uma pessoa pobre no sentido artístico pode correr o risco de entender que a obra se trata de apologia ao crime, de uma exaltação tola a violência. 

Pensar isso é ignorância, pois claramente o texto se refere a um recorte de realidade que existe independente da contemplação, da propaganda. Sangue negro e pobre escorre nos becos dos morros todos os dias, mesmo com toda a propaganda que existe CONTRA a sua existência, seu modo de vida. Apologia ao crime? Não. Um grito de socorro, uma dose amarga de realidade!

Até porque em nenhum momento a letra exalta a situação de seu protagonista que se vê abandonado por todos, que questiona os frutos que está colhendo e que só não se arrepende por algum senso de honra que ele mesmo não consegue justificar.

E encontramos ecos dessa postura em óperas clássicas. Don Giovanni prefere ir para o inferno ao abandonar seu modo de vida, Siegfried ignora todos as advertências de cautela em sua jornada ou seja, basicamente o que define um herói na maioria dos clássicos é se opor as regras que são impostas a ele. Quantos heróis já não desafiaram o desígnio dos deuses e as regras de sua sociedade e são louvados pelas mesmas pessoas que julgam adolescentes como o protagonista dessa letra?

"O Soldado que fica" talvez seja uma obra tão gigante quanto esses mitológicos clássicos, e pra mim é maior porque fala de uma realidade infelizmente tangível. Quem sabe ouvir esse texto possa gerar mais empatia pelos dramas que a sociedade cria todos os dias e não apenas pensar nessas pessoas de um ponto de vista higienista. Lembrando que não estamos falando uma realidade simples, que se possa expor completamente numa música ou num mero texto crítico, mas é fato que a arte sempre vai nos ajudar a dar um passo a mais na direção dessa compreensão.

Segue o clipe:

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