Política de sobrevivência

Houve um tempo em que se dizia que política era assunto complicado, que não deveria se discutir. Afinal de contas já dizia o jargão que "política, futebol e religião não se discutem", mas agora talvez se posicionar politicamente seja uma questão de sobrevivência. Aliás, reside nesse ditado uma ironia já que assuntos como futebol e religião sempre foram extremamente discutidos por se tratarem de grandes paixões do brasileiro. 

O futebol não precisa de explicações, mas muita gente não sabe que nos últimos 30 anos a religião tem mudado no Brasil de uma forma drástica com o avanço assombroso do protestantismo principalmente de linha neopentecostal. Porém parecia haver um consenso mudo de que política não era um assunto muito interessante, exceto quando fosse pra reclamar de alguma grande crise que estivéssemos passando.

Porém, nos últimos anos a política partidária finalmente tomou o interesse do povo que a via como um assunto distante, propriedade apenas dos ricos ou já bem posicionados políticos. Era visto como algo inalcançável. Mas desde 2012 a política partidária tomou um corpo ideológico, principalmente no que se refere a pauta de costumes, ou seja, quando falamos de assuntos como aborto, homossexualidade, porte de armas e outros assuntos.

Por isso agora se posicionar politicamente pode ter se tornado uma questão de sobrevivência.

Tomemos por exemplo a mais que nobre bandeira do combate ao racismo para explicar esse processo de interesse súbito que precisamos ter nesse momento histórico. Nosso país passou por 300 anos de exploração e genocídio do corpo negro, mas pouco se fala que, principalmente as elites que concentram poder financeiro e político, passaram os últimos 200 anos tentando fazer com que a população se esquecesse desses crimes. Até porque fomos vítimas de uns poucos que apesar de terem uma dívida histórica ainda conservam poder e riquezas que advém da exploração e morte de corpos negros. Portanto, é extremamente conveniente para essas classes dominantes que ainda hoje detém o poder pacificar esse ponto, de preferência apagando-o da história.

Porém, se a discussão fosse apenas do ponto de vista da narrativa histórica estaríamos bem. Mas infelizmente essa não é a realidade.

Ainda deixando claro que estamos usando o racismo no Brasil apenas como um exemplo desse problema tão complexo que é a política no nosso país, temos que considerar que os 300 anos de escravidão ainda geram consequências no Brasil atual. Corpos negros ainda são os que mais sofrem com menos acessos a direitos como saúde, inclusive sendo a parcela da população que mais morreu na pandemia, é quem tem menos acesso a renda e outras coisas. Fora que jovens negros são absurdamente a camada da população que é mais assassinada seja pelo crime ou pelo próprio estado. Lembrando que mesmo dentre os policiais os negros são os que têm as mais baixas patentes e os que mais morrem em serviço.

E como resolvemos essa questão? Será que alguma entidade privada ou do terceiro setor tem força para mudar a realidade social do nosso país? A resposta provavelmente é não, quem tem esse poder é o estado, e é impossível mudar o estado a nosso favor sem nos posicionar politicamente.

Com as redes sociais e as milícias digitais somadas a inabilidade gritante dos governos de lidar com campanhas eleitorais no mundo digital, mais do que nunca, é importante que o cidadão consciente de seu lugar na sociedade se posicione politicamente. Isso porque quem quer a mudança somos nós que sofremos. Nós mulheres, pretos, pobres, pessoas com deficiência, gays, trans, religiosos de matriz africana. A nós é quem essa sociedade sistematicamente explora e mata.

E como sempre, há forças comandadas por quem está confortável com essa situação que não estão nada interessadas em mudar.

Grandes concentrações de poder no nosso país, geralmente, emanam da exploração de desigualdades tanto do presente quanto do passado. Portanto é uma conta simples a se fazer: se diminuímos a desigualdade, o poder dessas pessoas diminui. E não há nada que assuste mais um poderoso do que a possibilidade de perder qualquer fragmento do seu poder.

Não estamos falando aqui de empobrecer ricos, invadir suas casas e arrancar seus bens. Estamos falando apenas de dividir um pouco das riquezas que já existem e são públicas com as demais pessoas na forma de programas de distribuição de renda e algumas reformas. Há especialistas que pregam que esse dinheiro já existe, porém a ganância e a conservação de poder não permite essa distribuição.

Além disso nós que queremos mudanças ainda precisamos lidar com uma inércia cultural que haverá em modificar um país conservador. Mudar individualmente exige esforço físico e psicológico, mudar enquanto sociedade exige uma quantia exponencial desses esforços. A questão da inércia cultural é tão forte que não é surpresa ver até mesmo pessoas dentre as minorias prejudicadas pelo poder hegemônico que seriam resistentes a essa transformação.

Portanto, não é obrigação, mas se você pode se posicionar, faça isso!

Como psicólogo seria injusto da minha parte dizer que você é obrigado a fazer isso ou aquilo. Muitas pessoas não vão conseguir se posicionar politicamente porque algumas vezes isso poderia significar expor-se a um risco ainda maior num cenário em que já é difícil meramente sobreviver. Porém, talvez essa não seja a sua realidade. Talvez você tenha a possibilidade de se manifestar nas redes sociais ou de forma pacífica com as pessoas próximas a você. Principalmente com quem já demonstra interesse de discutir esses assuntos de forma civilizada.

Se posicionar politicamente em 2022 é questão de sobrevivência literal. Num cenário em que a fome, a violência e outros índices negativos aumentam enquanto a economia vai pro brejo precisamos que haja uma guinada, o que não vai acontecer se quem tem condição de lutar por ela não entrar na batalha.

Posicione-se!

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