Psicologia Preta: Quando o branco desvia da culpa do racismo querendo ser negro.

 

Descrição da imagem: pintura de um rosto de mulher, metade dele é branco e metade é negra. Feito pela IA Craiyon.

Resumo feito por IA: O texto aborda a questão da "culpa do branco" nas políticas públicas, onde pessoas brancas com consciência social e acesso a direitos básicos podem manifestar o desejo de serem negras. Essa culpa surge da consciência de raça e classe, levando-os a buscar características negras em si mesmos ou uma narrativa de superação da pobreza. O autor sugere que fazer a diferença na luta antirracista e abrir caminho para pessoas negras podem ajudar a aplacar essa culpa. O texto também destaca que o conceito de raça é sociocultural e varia de acordo com o contexto geográfico, e ressalta a importância de reconhecer a dor de todos, independentemente da cor da pele.

Tenho encontros com pessoas brancas numa cena de atendimento mais em políticas públicas do que na clínica. Nesta última, sou procurado por pessoas que, geralmente, ou são negras e querem um atendimento contextualizado na realidade social brasileira, ou atendo pessoas brancas que têm sua própria consciência social.

Daí, nas políticas públicas não é incomum, quando falamos aqui do recorte de raça da hierarquia social brasileira, me deparar com o fenômeno da culpa do branco, principalmente aquele que tem acesso a alguns direitos como moradia, alimentação, mobilidade urbana e outros. E, esse tipo de acesso combinado com consciência social de raça e de classe cria um fenômeno bem interessante que é a culpa do branco que, por vezes, deseja ser negro.

Dá pra visualizar a pessoa se olhando no espelho, procurando “traços negróides", ou pior, procurando uma narrativa de superação da pobreza que, em muitos casos, é questionável. Veja bem, é claro que existem pessoas brancas pobres, e elas não são poucas. Mas ser pobre e negro no Brasil é um estigma duplo, e não falta literatura que embase essa afirmação.

No pós pandemia que acentua a crise moral e financeira pela qual passamos, não é incomum em rodas de conversa que as pessoas acabem disputando sobre quem está sofrendo mais, ou quem está mais cansado. Parece que o sofrimento do sujeito só é autenticado se sua mazela for reconhecida publicamente. E o branco com consciência social não pode disputar com o sofrimento do racismo, então ele quer, leia com ironia, “tornar-se negro”, porque seu sofrimento também precisa de autenticação.

Pessoas negras com consciência social e alguma formação dentro do pensamento antirracista moderno, vêem essa atitude com certo espanto, misturado, é claro, com uma falta de reação por nem saber o que fazer. Afinal, raça não existe de verde, é uma imposição sociocultural, portanto, quando não estamos falando de procedimentos que envolvem responsabilidade sócio-histórica como concursos ou cotas, raça é autodeclarada.

O branco culpado não vai mais dizer que seu avô era negro, mas vai procurar alguma experiência de discriminação semelhante, ou enxergar em si traços negros que, muitas vezes, estão fora de contexto.

Lembremos, o conceito de raça dentro do racismo, além de ser uma imposição cultural, também flutua de acordo com o contexto geográfico. A estética de quem vai ser considerado negro em Salvador vai ser diferente de quem é considerado negro em Blumenau. No entanto, esse desejo de ser negro do branco culpado extrapola até mesmo esse contexto.

Creio na minha humilde experiência que o que poderia aplacar essa culpa do branco seria, de fato, fazer a diferença. Apoiar causas antirracistas e, pelo menos uma vez na vida, dar seu lugar a uma pessoa negra. Não estou falando aqui de sacrifícios de vida ou martirização do branco, mas fazer a diferença dentro de sua possibilidade. Recusar um lugar de privilégio e abrir caminho para alguém que tenha o contexto racial que seria inacessível àquele lugar, disso que estamos falando. Essa experiência, na minha jornada, tem aplacado o discurso de culpa de muitas pessoas brancas.

Você não precisa ser negro pra ter sua dor reconhecida. Toda dor é válida. Até porque, se o desejo de ser negro for mesmo um fetiche, basta o brasileiro que aqui é considerado branco mudar-se de país, principalmente pra um que seja racista e predominantemente branco, que aí essa pessoa vai descobrir que pode não ser negra, mas ainda assim é latina e vai ser devidamente discriminada por isso.

No entanto, penso eu que fazer a diferença na luta antirracista é mais barato. Ah, e psicoterapia ajuda a lidar com isso.

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