CRÔNICA: Psicólogo ensina como ler mais ou "Sobre literatura, sociedade e ansiedade"

Eu ainda consigo lembrar do primeiro livro que li. Não falo dos livros para crianças ou livros didáticos ou aqueles que a gente é obrigado a ler sem nem mesmo ter a capacidade para entendê-los. Esse livro eu escolhi ler e era uma biografia de Alexandre o Grande que achei pela casa. A gente tinha muitos livros em casa, opção não faltava e desde pequeno minha mãe me incentivava a ler e interpretar textos.

Descrição da imagem: Mulher negra lendo

Quando penso nesse livro, não lembro das palavras, mas sim das sensações que ele promovia. Me recordo que o autor descrevia o nascimento de Alexandre de forma apoteótica, dizendo que era filho de reis, parente de deuses. Lembro de um lugar rochoso, numa noite clara.

Percebe como falo como se fosse uma experiência pessoal? As narrativas têm esse poder de criar memórias falsas em nossas mentes, como naquele conto de ficção científica de Phillip K. Dick que virou filme “Vingador do Futuro” com Schwarzenegger em 1990.

O livro te faz vestir a pele daqueles personagens, nos permite lembrar de cheiros, toques, de temperaturas, coisa que nem a mídia mais avançada que é o videogame não consegue fazer ainda.

Ler dá trabalho.

Ler demanda ocupar o nosso sentido mais importante, a visão. A gente consegue ouvir um podcast enquanto arruma a casa, ou dirige. Mas não dá pra ler um livro enquanto faz outra coisa. Você precisa sentar e fazer só aquilo.

No mundo das redes sociais em que um vídeo de tiktok viral dura alguns segundos, nosso cérebro talvez tenha ficado desacostumado a sentar e ler. E pra ter essa experiência imersiva que eu descrevo, as vezes não é só ler: é também reler, é parar para pensar sobre o que está escrito ou dar um tempo para imaginar aquilo que está sendo exposto.

Quem tem tempo pra isso?

No TikTok, já me vi assistindo filmes resumidos! Há perfis especializados em resumir filmes caso você não queira assisti-los ou não ligue para spoilers. Algumas cenas são mostradas enquanto um narrador explica o que acontece. Como num conto.

Não estou dizendo que isso é bom ou ruim, mas é um fenômeno. E talvez, uma pessoa imaginativa o suficiente também consiga submergir num TikTok de video resumido. Mas, não será que a experiência de um bom livro não seria mais densa?

No livro você consegue mergulhar nos pensamentos daquela personagem, ser deslocado para outra época. Mas é o que eu estou falando, dá trabalho. Exige paciência e tempo, duas coisas que talvez a gente não tenha mais. E isso é desumano.

Eu acho que nossa mente também mudou. Se você assiste um filme antigo, perceba, principalmente nos filmes de antes da década de 90, a narrativa era muito mais lentas. Menos cortes, mais exposição. Os diálogos sem pressa, muitas vezes, sem resolutividade. Hoje, parece que se não houver uma explosão ou frase de efeito a cada 10 segundos, a pessoa pode abandonar o filme.

Repito, não é bom ou ruim, é o fenômeno do tempo em que vivemos. E isso tem a ver com ansiedade. Tem a ver com a necessidade de se ocupar, de produzir o tempo todo, de estar sempre dando conta de algo ou expondo algo. Ansiamos por tempo livre e quando temos, nos sentimos culpados por esse ócio. Ler um livro talvez nos ajude a pensa “olha, eu estou lendo, estou fazendo alguma coisa”.

Mas aí ao sentar pra ler, vem aquele comichão que nos leva a questionar se não há nenhuma notificação no celular ou algo mais interessante para fazer.

Uma coisa que me ajuda a ler mais é fazer anotações nos livros. Sim, nas páginas dos livros. Eu acho que o livro não deve ser uma coisa “sagrada”. Livro, pra mim, tem que ser profano. Você tem que dobrar, amassar, escrever nele. Quando anoto ou sublinho no livro, ocupo a mente com outra atividade além de ler e me concentro mais.

Outra coisa que tenho gostado de fazer é ler em voz alta. Isso ajuda muito na concentração. Se for um texto de ficção, ensaiar vozes diferentes para os personagens se torna até algo divertido de se fazer.

Mas por que ler?

Ler também, ao meu ver, não deve ser uma obrigação. Hoje, algumas pessoas precisam dizer que seus gostos são os melhores para que eles sejam autenticados. Não se pode dizer “eu gosto”, é preciso dizer “isso é o melhor”. Alguns leitores dizem “livros são melhores que filmes e séries”. Eu acho que esse tipo de comparação não é sábia, pois são propostas diferentes.

Um vídeo de youtube pode ter a mesma confiabilidade de um artigo científico, quando é feito por uma pessoa especializada e que usa e divulga suas fontes. O método é diferente, mas o conteúdo talvez seja até de mais fácil compreensão e cumpre de forma eficaz a tarefa da divulgação científica.

Você pode fazer o que quiser, mas eu não gosto da ideia de ler só apenas pela estética intelectual que algumas pessoas vendem sobre os livros. Livro também pode ser folhetim. O Netflix do início do Século XX eram as bancas de jornal. O Brasil nunca teve uma alfabetização muito boa, por isso a gente não viveu essa febre por aqui. Houve um tempo, nos EUA e em alguns países da europa, que ao invés de celulares as pessoas tinham livros, revistas e jornais nas mãos em qualquer lugar.

O volume do consumo de textos impressos era tanto que não era incomum encontrar livros abandonados em rodoviárias, bancos de praças. Era ler e descartar. Apenas diversão. Não era atoa que grandes clássicos que conhecemos hoje, foram publicados inicialmente em revistas e jornais. A gente chama esse tipo de literatura de pulp, pois o papel do qual esses folhetins eram feitos era o mais barato possível. Descartável.

Talvez a gente não leia tanto mais porque não precisa. No entanto, ler emancipa. Ser hábil conhecedor de palavras e saber interpretá-las resolve problemas. Problemas políticos e sociais, diga-se de passagem. Porque quem domina o significado das palavras, domina nossa percepção da realidade.

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