O fetiche do livro


Circula pela internet a foto acima onde podemos ver uma menina com livros sentada numa gangorra e do outro lado um enorme homem que parece segurar um celular. Mas a moral da história (ou da estátua) está no fato da gangorra estar pendendo para o lado da menina com os livros, ou seja, a menina com os livros “pesa mais” do que o enorme homem segurando o celular.

A única coisa que parece ser fato nessa história é a imagem, pois os textos que a acompanham divergem. Um texto alega que a estátua seria no Japão, que é dentro do imaginário brasileiro uma civilização disciplinada e avançada. Porém, já vi alegações que esta estátua seria na verdade na cidade de Heihe (黑河), na China.

Mas independente de onde se localize essa estátua a mensagem é a mesma: livros pesam moralmente mais do que redes sociais.

Pro imaginário de algumas pessoas, alguém lendo um livro, mesmo que seja de fantasia ou sobre uma coisa inútil qualquer, é mais nobre, tem mais “moral”, do que uma pessoa que aprende sobre astrofísica no TikTok assistindo um vídeo de um especialista de verdade. Mas será que esse fetiche pela suposta intelectualidade dos livros começou agora?

Uma vez eu li, mas mais provavelmente eu vi no TikTok, que quando o livro se popularizou os escribas torceram o nariz. Eles teriam dito na época que os livros eram “sagrados” e que a popularização da leitura seria uma afronta ao conhecimento contido nos textos, as pessoas sequer conseguiriam entender o que estava escrito ali. Pior, o que os escribas mais temiam é que qualquer ideia poderia ser facilmente divulgada através dos livros e, praticamente, qualquer um poderia publicar alguma coisa sendo o livro uma forma “menor”, ou menos “nobre” de se transmitir conhecimento. Daí veio o jornal, depois o rádio, a TV, a internet e agora as redes sociais.

É interessante pensar como a sociedade, ou uma parte dela, parece sempre manifestar rejeição por uma nova forma de comunicação (ou mídia). Isso porque não é difícil encontrar publicações falando mal do rádio na época em que ele surgiu, ou da TV e agora repetimos a mesma coisa com as redes sociais.

A publicação impressa nunca foi tão popular quanto as mídias de mais fácil acesso como o rádio ou a TV devido a forma como a educação no nosso país sempre foi desigual refletindo sempre a hierarquia social baseada na escravização que vigora até hoje e, principalmente, a pobreza. No entanto, nos países do suposto “norte” do mundo, no início do Século XX, livros, revistas e jornais eram tão comuns quanto o streaming é hoje. E assim foi por muito tempo.

Daí você pode imaginar que se havia abundância de livros e revistas era comum ter textos sobre qualquer coisa, escritos por qualquer um que não necessariamente fosse um especialista naquele assunto, apenas alguém com a capacidade de escrever e publicar na posse de uma opinião.

Eu acredito que o livro tenha tomado essa dimensão sagrada até porque somos um país colonizado por cristãos, uma religião que se refere a um texto sagrado. Mas o que talvez coloque o livro no “altar” seja mesmo a educação precária. Afinal, no imaginário, talvez o livro seja coisa de quem “estuda muito”, como se tivesse que ter alguma espécie de “aprovação técnica” para se publicar um texto.

De fato, algumas formas de conhecimento ainda são acessíveis plenamente apenas através de texto. Não é possível formar um sujeito sem que seja necessário a leitura de livros, artigos e a devida sabatina desse sujeito sobre a compreensão que ele teve sobre esses textos. Talvez, no momento histórico em que vivemos, passar uma informação para outra pessoa de forma plena só possa ser feito através de um texto, onde cada palavra pode ser escolhida, pensada não só em seu significado, mas também contexto e ordem.

Mas se lermos esse texto num vídeo, será que ele não fica de mais fácil compreensão? Será que o texto não pode se tornar uma forma de consulta póstuma a comunicação feita através da mídia? Acho que Paulo Freire poderia dizer algo sobre isso.

Essa discussão é longa e eu sou preguiçoso. Não é atoa que prefiro escrever textos ao invés de gravar e editar meus vídeos nas redes sociais. Mas quem me segue por aí sabe que eu sou contra a sacralização dos livros. Sou uma pessoa que pensa que livro é pra ser lido. Que pode sim ser arregaçado, dobrado, que pode-se fazer anotações em suas páginas. Melhor que ficar imaculado numa prateleira sem ser lido! Dá pra ler o livro sem destruir ele, no entanto, mais vale a leitura do que a conservação do objeto físico livro, que sem o leitor não serve pra nada.

Então, vamos lembrar que livros também podem falar besteira. Que não é porque “está escrito” que aquilo é sagrado. Vídeos nas redes sociais podem ser educativos também. Na minha opinião, o que vale mesmo não é a forma como você consome a informação, mas sim a fonte.

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