Análise da letra Eclipse do Pink Floyd.


Ainda na vibe do post de ontem ("A arte como coisa outra"),uma das músicas do álbum Dark Side of the Moon do Pink Floyd que não sai da minha cabeça nesse momento é "Eclipse", a faixa que fecha o álbum. Aliás, essa música quase nomeou o álbum inteiro porque, em 1972, outra banda, a Medicine Head, tinha lançado um disco justamente chamado Dark Side of the Moon. Então, o Pink Floyd pensou em chamar o álbum de Eclipse, mas, como o disco da Medicine Head fracassou em seu lançamento, eles decidiram manter o título que a gente conhece hoje. É uma música com um estilo gospel, aquele típico da música evangélica americana, com um vocal de diva negra ao fundo contrastando com as vozes melódicas dos caras do Pink, além de um órgão elétrico e bateria marcantes. Mas o que me chama mais a atenção é a letra, que, em tradução livre minha, diria algo como:

Tudo que você toca.
Tudo que você vê.
Tudo que você prova.
Tudo que você sente.
 
E tudo que você ama.
Tudo que você odeia.
Tudo que você desconfia.
Tudo que você poupa.
 
Tudo que você dá.
Tudo que você negocia.
Tudo que você compra,
implora, toma emprestado ou rouba.
 
E tudo que você cria.
E tudo que você distrói.
E tudo que você faz.
E tudo que você diz.
E tudo que você come.
 
E todo mundo que você conhece.
E todos que você despreza.
E todo mundo com o quem você briga.
 
E tudo que é agora.
E tudo que se foi.
E tudo que está por vir.
E tudo sob a luz do sol está em sintonia.
exceto que o Sol está eclipsado pela lua.

A letra, na minha opinião, descreve alguma espécie de assincronismo, uma desconexão súbita da experiência de realidade. O que eu escuto nessa poesia é que talvez estejamos falando de uma relação desejo/objeto, uma relação com o Outro e com o Real. Esses três conceitos são psicanalíticos, mais especificamente pertencentes à psicanálise de Lacan, sendo os mais importantes aqui o Outro (com O maiúsculo), o objeto a e o Real. Esses são conceitos extremamente complexos, que eu não vou conseguir explicar aqui, mas podemos dizer que a relação entre o desejo, o objeto a e o Real está no centro da experiência humana descrita por Lacan: somos guiados pela busca de algo que nos falta (o objeto a), mas essa busca está sempre confrontada com os limites do que pode ser representado simbolicamente (o Real) e mediada pelas normas e significados fornecidos pelo Outro. É essa dinâmica que percebo na poesia de "Eclipse," que me traz essas desconexões e ausências de forma tão poderosa.

Eu dividi a letra por setores, onde, na minha interpretação, são descritas experiências humanas. A forma como esses setores são divididos também é interpretação minha, porque o texto da letra original é corrido, ou seja, não há parágrafos. A música inicia com o primeiro setor, descrevendo sensações com o verso "tudo que você": "toca", "" ou "prova" (no sentido de paladar ["taste"]); depois migra para sentimentos com "tudo que você": "ama", "odeia" ou "suspeita" (desconfia) e "poupa", que é traduzido de "save". Essa palavra pode ter vários significados na língua inglesa. Eu escolhi traduzir como "poupar" porque pode significar tanto "economizar" quanto "salvar", no sentido literal da língua portuguesa, ou até mesmo "poupar" no sentido de aliviar de um mal que seria sofrido.

É importante lembrar que Dark Side of the Moon é um álbum, um conjunto de músicas. As canções, na minha opinião, perdem parte de seu sentido quando isoladas. Uma das provas disso talvez seja que, em algumas músicas, é possível ouvir trechos da música que vinha antes, como é o caso desta, onde ouvimos parte da melodia final de Brain Damage, a faixa anterior. Considerando isso, é preciso lembrar que esse é o mesmo álbum que contém a música Money, que é uma crítica bem clara ao capitalismo. Então, "save", eu escuto mais como "economizar", mas, para manter a ambiguidade, escolhi "poupar", que pode ter os dois significados.

Mas, seguindo a análise, passamos dos sentimentos para a interação com o Outro, ainda com essa vibe de relação de objeto, com "tudo que você": "", "negocia", "compra" e o combo: "implora, toma emprestado ou rouba", que marcam uma relação de desencontro com esse desejo alheio, com esse Outro. 

Essa coisa do Outro é um conceito que o Lacan criou para representar as relações humanas dentro do campo simbólico. É uma espécie de projeção simbólica da nossa mente sobre a relação com as pessoas ou a sociedade. É importante destacar que o Outro não é uma pessoa, ou pessoas de verdade, mas sim um conceito amplo, um campo. O Outro é o lugar da linguagem, das normas e dos significantes que estruturam o desejo e a subjetividade. Enfim, é daqueles termos difíceis de explicar numa postagem de blog.

Daí partimos pro setor que vai no sentido de alterar a realidade (expernciada), de construir o mundo a nossa volta com "tudo que você": "cria", "distrói", "diz" e "come".

Então, vamos para as pessoas ou o Outro. Parece que o conjunto do setor "todos que você conhece" é composto por "todos que você", segundo a minha tradução livre, "despreza" e todos com quem você "briga". Para mim, isso faz algum sentido, porque desprezar é uma coisa mais distante; é dizer de um outro (pequeno outro) que está ausente. Lutar (ou brigar) é algo presencial, por vezes corporal. "Todo mundo que": "você conhece", seguido por "todos" que "você despreza". Aí já temos mais um desses impasses de tradução, que é a palavra "slight".

Dentre os vários significados que encontrei, o que pareceu rimar mais com o que é dito nos outros versos foi "desprezar", mas que também pode ser "falar mal". Um fato curioso é que o seguimento do  amor ("tudo que você ama") esteja lá no começo da letra, entre os sentimentos, e não apareça entre as pessoas. Mas aí a gente percebe um possível impasse de tradução, porque a palavra original em inglês, "all", pode ser "tudo" e "todos". Então, aquele verso lá de cima pode significar também "tudo que você ama", que foi a minha escolha, mas que também inclui objetos.

Nesse trecho, Waters usa o termo "everyone" (todos ou todo mundo) duas vezes, nos versos "conhece" e "briga", mas, quando fala de desprezar, ele usa "all", que pode significar todos (pessoas) ou tudo (objetos e pessoas). Mas talvez, nesse ponto, isso seja apenas chiste — não que chistes sejam algo a se desconsiderar ou desimportantes —, mas que haja aí um sentido que escapa ou talvez que nem exista.

Então sigamos. Porque agora entramos na experiência do tempo e quem já leu "A Palavra-Humana", meu romance de meta ficção, sabe que o tempo tem um significado especial para mim. No setor do tempo temos "tudo que": "é agora", "já se foi" e que "será".

E os Waters encerra a canetada amarrando todo o texto dizendo que estamos falando aqui de "tudo que o sol toca" e completando que estas coisas estão, no original em inglês, "in tune". Essa expressão pode ser entendida como "tudo está em sintonia", como um sinal de rádio, mas também pode significar "afinar", igual quando "afinamos" um instrumento. Também tem a ver como "harmonia".

Mas aí vem o corte:

Tudo está em "harmonia" menos duas coisas: uma é uma cena cósmica apoteótica que está no topo dos céus e no título da música: que é o eclipse, ou como nos diz Waters na letra "exceto que o sol está eclipsado pela lua". Mas há outra coisa que não está ali: a própria falta. Por que ele não diz tudo, ou "toda matéria" ou "tudo que existe", ele disse que é "tudo que o sol toca", são todas essas coisas (que o sol toca) que estão "sintonizadas", "afinadas" ou em "harmonia". Lembrando que é interessante o destaque d'agente entender que tune também pode significar "afinar" porque "harmonia" em música é um conceito subjetivo, que é construído socialmente, que é um acordo que não necessáriamente está ancorado no real.

A música tem uma estrutura matemática, ou seja, uma estrutura de linguagem. Existem diferentes escalas musicais em diferentes partes do mundo. Uma música de uma parte do mundo pode parecer "desafinada" em outra, assim como palavras têm significados diferentes em países que falam línguas parecidas.

Então, correndo ainda mais risco aqui de cometer uma "interpretose", ou seja, uma interpretação forçada, digo que o eclipse é o momento em que talvez se perceba a falha nessa armonia, onde a gente possa contemplar a falta (talvez indiretamente) mesmo durante a luz do dia quando as coisas são tocadas pelo Sol. A "falta" é esse conceito em psicanálise que diz que existem coisas que estruturam o nosso desejo como sentimentos, pensamentos e até experiências que nunca poderão ser representadas em palavras, que existe esse buraco na linguagem e, portanto, na experiência humana que não pode ser preenchido. No meio desse buraco em torno do qual a nossa linguagem orbita está o Real.

É importante destacar ainda que, durante a maior parte da existência da humanidade nesse mundo, eclípses eram eventos apoteóticos, esotéricos, eram milagres, manifestações divinas, lembrando que talvez a adoração ao sol tenha sido uma das formas mais primordiais de religião que conseguimos pensar. Então temos um corte nessa harmonia, uma harmonia que as vezes a letra faz por oposição como "amor" e "ódio", ou "cria" e "destrói. Na minha cabeça, talvez isso possa ser encarado como uma analogia à essa falta de harmonia que a experiência humana inevitalmente atravessa.

Essa interrupção também pode falar de um surto, ou seja, psicose. Lembrando que o Pink Floyd teve uma experiência muito intensa com o surto de Syd Barret, um de seus membros e uma das faixas, "Brain Damage", de certa forma fala de um colapso mental quando diz que há vozes em sua cabeça, dizendo que os "lunáticos estão na minha cabeça".

Como eu disse no post anterior, os psicanalistas dizem que a psicanálise pisa em território que antes foi desbravado pela arte. Talvez essa música seja uma das diversas provas disso. 

Bonito, não?

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