A culpa da chuva

Pintura: a vista sobre a cidade num dia de chuva.

 

Eu adoro dias de chuva. Quem me acompanha por aqui sabe disso.

Mas, num mundo de capitalismo tardio, nem essa chuva gostosa traz alento.

Sou uma pessoa de dois mundos diferentes. Tendo origem pobre e periférica, hoje olho o centro comercial de uma cidade de médio porte pela janela do escritório do meu apartamento. Uma vista de privilégio.

Quando eu era criança olhava por cima das casas pobres, por cima dos morros e usava minha imaginação para fugir dali. Antes eu olhava a cidade de baixo pra cima, hoje olho de cima para baixo.

E, contemplando o conforto da temperatura amena, da névoa que se estende até os bairros mais distantes que a minha vista consegue alcançar, da sinfonia das gotas que tamborilam na janela, sinto culpa. 

Culpa de imaginar os trabalhadores que saem de suas casas, às vezes sem café. Que trabalham nas ruas, sem abrigo, ganhando a vida. De quem acordou de madrugada e ainda teve que se molhar. De quem não tem onde morar. E essa culpa não me deixa aproveitar totalmente esse conforto, de estar em casa num dia de chuva.

No meu livro, “A Neurose da Culpa”, falo que isso pode ser uma questão do capitalismo, que nos impõe o mito da produtividade, da incessável eficiência. Quem nunca sentiu culpa por estar descansando num dia de folga, ou até mesmo num fim de semana? Isso é bem cruel, achar que temos que estar produzindo lucro para “eles” o tempo todo.

Minha saída é sempre a poesia. Por isso esse texto. Com esse texto expio a culpa e rogo aos senhores da caneta (ou dos teclados nesse caso) que me dêem seu perdão. Afinal, arte também é trabalho e quando a coloco aqui, em meio a esses anúncios, alivio a minha culpa, mas me insiro novamente no jogo do capital

Mas talvez não seja de mim a culpa de me inserir nisso, afinal, é o nome do jogo que todos somos obrigados a jogar, pois é o jogo do Outro  e talvez não haja arte sem se dispor a jogar esse jogo, o jogo da realidade presente e não dos sonhos futuros.

Boa chuva a quem lê (se for de chuva).