Reassistindo Evangelion em 2025

 Neon Genesis Evangelion | Netflix

Nada menos que trinta anos se passaram desde o lançamento do anime de robôs gigantes que revolucionou o gênero. Estou ficando velho. Tendo em vista a comemoração, que no Japão contará com uma exposição sobre a animação, decidi revisitar alguns episódios da série para ver se passa no teste dos 30.

1. Contexto Histórico. 

A primeira história japonesa de robôs gigantes é o mangá (história em quadrinho tipicamente japonesa) Tetsujin 28-go, de Mitsuteru Yokoyama, publicado em 1956. O quadrinho introduziu o conceito de um robô gigante, que nessa versão era controlado remotamente e mais tarde foi adaptado para animação em 1963, tornando-se um dos primeiros animes do gênero. (Wikipedia)

Talvez indo na onda dos filmes de monstros gigantes cujo maior expoente é Godzilla, as histórias sempre giram em torno dessas máquinas colossais que têm forma humana e defende os japoneses de perigos titânicos, sejam monstros ou até mesmo outros robôs gigantes. Muitas vezes essas máquinas estão ligadas ao poderio militar japonês.

Há quem diga que monstros e robôs gigantes são um reflexo do trauma das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki lançadas em 1945 pelos EUA durante o fim da segunda guerra mundial. (Mariana Assumpção, Ingresso.com)

Então, cada vez mais os animes de robô gigante acabaram se tornando um verdadeiro gênero das animações e histórias em quadrinhos japonesas. Há expoentes que chegaram com pouco impacto no ocidente, como a série Gundam, que existe até hoje, mas os robôs gigantes sempre habitaram nossos imaginários aqui no Brasil, principalmente na infância das pessoas que nasceram nas décadas de 80/90, onde eles nem sempre eram protagonistas, mas eram fortes coadjuvantes como nas séries Jaspion, ou Power Rangers.

No entanto, poucas animações exploraram a dimensão psicológica da experiência de se pilotar um robô gigante, ou no termo correto original "Mecha" quanto Evangelion.

2. A série 

Indo ao ar originalmente em 1995 no Japão, Neon Genesis Evangelion, que significa literalmente "Evangelho da Nova Era" é um anime que mistura num caldeirão cultural diversos temas diferentes. Ele fala sobre traumas psicológicos como a solidão urbana e problemas familiares, influencia da formação incompleta do diretor em psicologia, fala de religião judaico-cristã de uma forma muito Lovecraftiana, ou seja, influenciado pelo terror cósmico, subgênero do terror e da ficção científica, tudo isso com os robôs gigantes mais interessantes que eu já vi na telas até hoje.

A história começa com o primeiro protagonista, Ikari Shiji ou Shinji Ikari (碇 シンジ) no original, pois em japonês o sobrenome vem primeiro, chegando em Tóquio 3, uma cidade que é a terceira encarnação da famosa capital japonesa, pois a original foi inundada devido ao derretimento das calotas polares após a chegada de uma entidade que foi descrita como "o primeiro anjo". Ao contrário do saber popular, nesse universo os "anjos" são seres monstruosos e titânicos, alguns são tem uma forma parecida com a humana, mas eles têm diversas manifestações bizarras e algumas até mesmo abstratas, o que bate com algumas interpretações da bíblia e dão essa estética de "terror cósmico" a eles. E neste primeiro episódio Shinji é convocado por seu pai que é uma espécie de militar de uma organização super secreta e quando chega a cidade, ela está sendo atacada por este que seria o "terceiro anjo" (monstro gigante). É então que lhe revelam sem nenhuma cerimônia que ele é o único que pode pilotar um robô gigante e derrotar a ameaça, revelando o real motivo por trás da convocação de seu pai com quem tinha vínculos rompidos e não via há muito tempo.

O primeiro episódio que é batizado de "Angel Attack" é um retrato perfeito de tudo que veremos na série: monstros gigantes com um design muito interessante, uma cidade quase fantasma, mas enorme, que ajuda a ressaltar muito o sentimento de solidão, traumas psicológicos, relações familiares conturbadas e, claro, não poderiam faltar as batalhas envolvendo robôs gigantes e equipamentos militares e logística (Sim! Logística!) extremamente bem desenhados e pensados, destacando que a cidade em si é toda preparada para receber essas batalhas, pois essa organização militar ultra secreta já sabia que eles viriam.

Além disso, é nos revelado logo no primeiro episódio que os robôs gigantes que protagonizam a série, ou os EVAS, não são exatamente "robôs".

Na ficção científica um robô é uma criatura autônoma, não necessariamente de forma humanoide. Um androide é um constructo com forma humana que é feito de carne e ossos (ou estruturas sintéticas que lembrem isso), mas que foi desenvolvido por humanos como uma espécie de ser artificial. Um EVA, o "robô gigante" da série, é um ciborgue gigante, mais especificamente na série ele é descrito como um "ciborgue de batalha", e ciborgues possuem partes mecânicas e biológicas como, por exemplo, um exterminador do futuro, afinal todos podemos lembrar daquela cena clássica em que Schwarzenegger arranca a pele do braço mostrando seu esqueleto mecânico. Logo se explica então que as crianças (sim são crianças!) que protagonizam a série estão pilotando corpos de gigantes de possíveis clones de anjos vestidos (ou contidos como diz a série) por armaduras cibernéticas. Sim. É complexo, mas muito interessante.

Além disso, os EVA não funcionam livremente. Eles precisam estar conectados a um "cabo umbilical" (termo da série) e, quando não estão conectados, têm uma autonomia de apenas 5min em modo de economia de energia, ou 1 minuto com poder total. O que imprime uma sensação de urgência magnífica em todas as batalhas, um tempo que nem sempre é respeitado, mas que a maioria das vezes oferece um desafio a mais pros pilotos e pras equipes.

Além disso, os robôs gigantes pertencem a uma instituição chamada NERV, que teria uma conexão que até hoje eu não entendi com a ONU. Eles são uma espécie de militares ultra secretos e o anime não poupa esforços em sempre demonstrar toda a cadeia logística necessária para manter os robôs operantes e, para qualquer geek, isso é muito interessante.

Pense numa EVA como um carro de fórmula 1. O piloto pode parecer o protagonista, mas existe toda uma logística e milhares de pessoas trabalhando para manter a coisa funcionando o que, mesmo sendo um universo com "anjos espaciais gigantes" dá um senso de realismo e detalhismo muito interessante para o universo. 

O anime também não poupa o espectador de discussões políticas que deveriam ser óbvias, mas que nunca havia se pensado como, por exemplo, como os demais países iriam reagir sabendo que o Japão é um país que têm armas como robôs gigantes?

3. Repercussão.

O anime foi um sucesso estrondoso internacionalmente. Aqui no Brasil foi exibido em '99 na Locomotion, um canal por assinatura, ou seja, fechado, lembrando que não existia streaming na época, mas ficou muito popular nos anos 2000 através de DVD's piratas. Eu mesmo conheci a série num evento de anime que estava exibindo a série (muito provavelmente de forma ilegal) e logo adquiri um DVD pirateado, afinal a internet de boa qualidade aqui na minha região era privilégio de poucos e esses DVDs salvavam vidas geeks na época.

A série original tem 26 episódios que foram seguidos de dois filmes que na verdade são OVAS, ou seja, são uma espécie de episódio especial de duração maior.

Porém, de 2007 até recentemente em 2021 o anime passou por um ramake, ou melhor, "rebuild" como definiram os criadores. Nesses quatro filmes houve adição de alguns personagens, mas a trama continuou a mesma. Aliás, nos primeiros dois filmes a série original parece ter sido reproduzida cena a cena salvo por alguns detalhes, como o fato de ter sido um pouco resumida, mas depois alguns personagens novos aparecem, crianças que eram coadjuvantes ganham seus próprios EVAS e o fim desses filmes é um tanto diferente do fim oficial da série que é o OVA The End of Evangelion (1997), mas ainda sem explicar muita coisa e agora com batalhas psicodélicas ao invés de cenas desconexas de pessoas batendo palmas e falando "parabéns", algo que virou até meme.

4. Em 2025, vale assistir a série? 

A resposta objetiva é um óbvio sim. Mas por onde começar?

Evangelion não é nenhum One Peace, mas ainda assim há bastante material disponível. No entanto, pra mim, a série original ainda é a joia da coroa desse legado. Sim, estou descartando até mesmo os filmes originais.

A série original é mais focada no drama, isso na minha opinião é claro. Na época eu assistia torcendo para chegar logo as cenas com robôs gigantes lutando contra os "anjos espaciais", mas eles servem de envelope para falar sobre muito mais.

A solidão urbana pra mim é um dos grandes temas da série. Como eu já disse, Tokio-3 é uma cidade mega tecnológica, quase ciberpunk, mas que é preenchida por esses prédios cinzas estéreis. Não faltam cenas de semáforos sinalizando ruas vazias, quadros do por do sol mostrando uma cidade habitada por sombras, e sempre que vemos uma multidão ou grupo de pessoas, o quadro que se pinta é sempre no sentido de demonstrar o quanto aqueles personagens estão sozinhos mesmo que acompanhados.

Não sei se faz sentido, mas é um vazio claustrofóbico.

Uma das provas de que o drama é um dos fortes da série, não descartando claro os robôs e as lutas que são muito legais, é o episódio conhecido como "dilema do ouriço" que fala justamente sobre esse sentimento avassalador de solidão onde o outro, apesar de fazer falta, também é uma ameaça! Lembrando que estamos falando de um país esse sentimento de isolamento, principalmente urbano, é algo que afeta diretamente a vida de muitas pessoas por lá.

Fiquei com a impressão que os filmes do "Rebuild" se focaram nas batalhas, adicionando novos robôs e personagens, deixando um pouco de lado esse drama que a série original tinha.

Aliás, a animação da série original, completamente analógica, ainda hoje é muito bela. O primor técnico beira na minha opinião ao mesmo rigor que produções do Studio Ghibli, por exemplo. Sendo que os filmes recentes já se valem de CGI, mesmo que de forma discreta.

No entanto o fim da série é aberto e muito polêmico por isso. Não há um encerramento final, sendo os dois últimos episódios um misto de cenas psicodélicas que muita gente vai ter dificuldade de chegar até o fim, ao exemplo da já citada cena dos parabéns que virou meme. Mas, eu digo que essa obra é sobre o caminho, não sobre a chegada.

A série animada original ainda vale muito a pena e, se for assistir, está disponível de forma completa (com os filmes e tudo) no Netflix. Mas uma dica subversiva: a versão pirata ainda é mais a aconselhada se você quiser uma qualidade de imagem mais rigorosa e legendas mais exatas.

As legendas feitas por fãs dessa série são primorosas. Os caras chegam a traduzir documentos exibidos na tela, usam cores diferentes para quando pessoas falam juntos e qualquer fala, mesmo que mais distante no fundo da cena, vai estar na legenda.

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