Resenha: O Silêncio dos Inocentes
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Capa do livro "O Silêncio dos Inocentes", o rosto de Hannibal com uma máscara de contenção num tom predominantemente marrom. |
A grande maioria das pessoas certamente já ouviu falar do médico canibal Hannibal Lecter, seja pela série de filmes clássica dos anos 80/90 ou pela recente série de TV que foi injustamente cancelada, mas vejo pouca gente comentando sobre a série de livros que deu origem a tudo isso.
Durante minhas férias, prestes a sair de casa com a mala já quase pronta, me voltei pra minha estante em busca de um livro de bolso pra ler no avião e me dei conta que, graças a minha esposa, a gente tinha uma cópia de O Silêncio dos Inocentes imaculada na nossa estante. Eu já queria ler algo mais pulp ou meramente entretenimento já havia um tempo e decidi dar a vez então ao nosso médico canibal.
Sobre o corpo do livro, a brochura se trata de uma edição de 2008 da BestBolso, com uma capa onde se estampa o clássico rosto do doutor Hannibal contido em sua máscara. A capa é feita de papel cartão liso e o livro não abre muito bem a princípio, mas é resistente. Consegui deixar ele bem aberto para poder segurar com uma mão só sem "quebrar a lombada". A brochura se mostrou resistente até mesmo quando você dobra o livro no meio para segurar com uma mão só.
Mas o que interessa aqui é o texto, mas antes disso preciso fazer uma observação sobre o contexto em que li.
Recentemente venho discutindo muito nas redes sociais sobre como a literatura recente tem tentado imitar telas. Principalmente os eBooks de autores independentes, que as vezes são escritos por pessoas que já nasceram com telas em seus bolsos, os livros de entretenimento como os CEOs da vida muitas vezes não se preocupam com o lirismo de sua narrativa, muitas vezes, beirando ao formato de roteiro com cenas meramente descritivas, poucas analogias e personagens unidimensionais.
Tendo isso em vista, é interessante notar que Thomas Harris é um autor profissional que se tornou, inclusive, roteirista de alguns dos filmes da série Hannibal, portanto, eu já estava preparado para uma escrita mais "técnica" e pouco poética, mas o autor me surpreendeu entregando um thriller que consegue ser, ao mesmo tempo, descritivo como um roteiro mas ser poético em suas descrições.
O autor consegue criar imagens riquíssimas com suas palavras, o que explica, por exemplo, por que a série recente baseada na obra é tão rica esteticamente porque há uma fonte para isso: os livros! A obra pode não ser muito rica na caracterização dos personagens e na transcrição de seus sentimentos, porém o autor não deixa barato se usando do artifício da transcrição literal de seus pensamentos o que suprime essa ausência.
Além disso, eu que nunca tinha lido histórias policiais antes e que já conhecia o enredo por conta do filme de mesmo nome, me vi preso pelo mistério, tendo em vista que há detalhes que divergem a obra literária da cinematográfica como, por exemplo, o fato de Hannibal nos livros ter seis dedos em cada mão.
Há obras também que eu costumo recomendar para quem está muito tempo sem ler, para dar uma esquentada no hábito, e essa é uma delas. O fluxo do texto é perfeito, os capítulos têm o tamanho certo e poucos deles não fazem a história andar. Foi uma leitura encerrada em menos de 10 sessões, pois o texto não é muito longo. Os capítulos curtos e o bom fluxo ajudam a reforçar positivamente o hábito da leitura.
Enfim, se você já é fã do universo do médico canibal favorito do cinema e gosta de ler, vale muito a pena investir na obra. Lembrando que eu também recomendo como obra pra resgatar o hábito da leitura devido a fluidez.
É importante ressaltar que a obra é a segunda da série, mas foi a primeira a virar livro. Portanto estou lendo na ordem cinematográfica ao invés da ordem literária.
ADENDO IMPORTANTE: Sobre a transfobia na obra.
Então, sempre fui fã da série Hannibal e confesso que, na década de 90 a gente não pensava muito sobre essas coisas, sendo que já deveria estar pensando há muito tempo. No entanto, após a publicação dessa resenha, um colega do nosso grupo de WhatsApp "Livremos" apontou que existe uma grande discussão envolvendo a obra O Silêncio dos Inocentes (principalmente o filme) devido a representação de pessoas trans como sendo pessoas que, necessariamente têm transtorno mental e/ou são pessoas agressivas ou perigosas.
Pra quem não se recorda, na trama, o serial killer Buffalo Bill está assassinando mulheres para arrancar a sua pele e fazer um "corpo de mulher" para si. Pelo pouco que pesquisei (não vejo o filme há pelo menos uns 5 anos), há cenas que negam que Bill seja uma pessoa transgênero sendo sua outra sua "patologia", mas aí a gente cai no mesmo buraco que é dizer, mesmo que sem querer, que pessoas com transtornos mentais podem ser necessariamente perigosas, ou dando a entender que a transexualidade é alguma espécie de patologia o que não é verdade.
Depois de refletir um pouco percebo que o filme, mesmo que não queira, traz estereótipos muito negativos que até hoje, mas principalmente na época, podem ter influenciado negativamente a percepção do público geral sobre pessoas trans e de outras sexualidades diversas. Em uma postagem no Reddit vi inclusive uma fala dizendo que o filme pode ter influenciado até mesmo a visão de pessoas trans sobre si mesmas de forma negativa o que, definitivamente não é legal.
Sobre a obra literária, não me recordo de ver essa estereotipação do personagem e todas as vezes que me recordo, a questão da sexualidade de Bill é tratada com muito respeito e a todo tempo é negado que ele seja uma pessoa trans. Num dado momento, o FBI, por uma dica de Hannibal procura uma clínica de cirurgia de redesignação de gênero, local que poderia ter sido frequentado pelo assassino em série e o médico que os atende deixa explícito que não vai ajudar caso as pessoas que são atendidas na clínica sejam expostas, a própria clínica seja identificada ou qualquer alegação envolvendo pessoas trans de forma negativa seja feita na imprensa.
Achei isso legal, mas por outro lado, se precisamos negar tanto assim, tem algo de errado aí. Se a gente for inocente podemos até pensar que, para quem não entende do assunto, ler a obra pode ser uma forma de esbarrar com afirmações científicas de que pessoas trans geralmente são pessoas marcadas por serem vítimas de violência e não causadora delas. Mas a gente sabe que, muito provavelmente, esse é uma cadeia lógica que pouca gente vai fazer, permanecendo de forma predominante o estereótipo negativo.
Mas e aí? Estamos desrecomendando a obra?
O livro foi publicado em 1988 e aí eu vi alguns comentários de pessoas alegando que chamar a obra de transfóbica seria anacronismo. No entanto, em 1988 a questão da sexualidade diversa já era amplamente discutida até mesmo na grande mídia, até porque estávamos vivendo a pandemia de HIV/AIDS. Um período que visibilizou bastante a causa, mas muitas vezes (talvez na maioria delas) de uma forma negativa, transformando pessoas com sexualidade diversa em monstros.
E é importante marcar que Buffalo Bill é de fato o monstro da história de O Silêncio dos Inocentes, um personagem que é propositalmente desumanizado o tempo todo, que mal aparece salvo por alguns poucos capítulos e sua trajetória é explicada as pressas num último capítulo que soa como uma "cena pós créditos" desinteressante.
O fato é que Bill (que nem é um nome que ele escolheu - seu nome é Jame que se pronuncia como name) é uma pessoa de sexualidade diversa (seja trans ou não) que é retratado como um corpo que ameaça. E essa não é a natureza da fobia de qualquer "minoria" em si? Além disso, Bill ainda é adotado e matou os próprios avós na adolescência para colocar a cereja de casca de feijão num grande bolo de m#rda que é a construção o personagem, não só para os dias de hoje como para a época.
O que sinto é que Harris quis criar uma obra provocativa, esbarrar mesmo em nervos expostos da sociedade. Ela traz diversos personagens "excêntricos" (escolhi essa palavra com um cuidado provocativo), Hannibal é apenas o ás desse baralho de provocações. O autor retrata Clarice com seus traumas e uma iniciativa que pode soar como uma masculinização do personagem, mas que pra mim ficou mais complexo que isso. Traz a senadora, com sua filha que grava vídeos de sua vida sexual "bem ativa" e fala de luto, de escolhas que têm consequências destroçadoras. Também Trata de política, de corrupção tanto na alta política quanto na micro política de um manicômio, por exemplo, quanto do FBI. Mas fala, principalmente sobre repressão e como ela pode nos prejudicar das formas mais sinistras quando é exacerbada e de formas assustadoras quando não existe de fato.
O texto, portanto, continua sendo muito bom e é uma obra que te prende bastante, mas há esses detalhes graves que berram e talvez sejam mesmo um retrato de uma época, fruto da torrente de notícias sensacionalistas sobre assassinos em série nas reportagens policiais, fruto de uma sociedade que se alimenta do medo para fins de entretenimento banal com suas tevês cuja tela jorra sangue. Por que não pensar então na obra como uma caricatura dessa sede que a sociedade tem pelo perverso?
Não tenho capacidade para julgar sobre uma possível censura da obra, mas acho interessante que temas tão sensíveis assim e, querendo ou não, controversos, no futuro, venham com um aviso ou no mínimo um conjunto de notas de rodapé que façam o leitor refletir sobre os contextos do que está lendo como já é extremamente comum na obra de autores como é o caso de Lovecraft e em alguns tipos de romance romântico por aí.
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