Como foi escrever A Palavra-Humana


Escrever A Palavra-Humana nunca foi simples, nem linear. Talvez porque a palavra, antes de ser escrita, foi vivida. A primeira fagulha veio nos corredores da faculdade, quando Sartre falava de existência e eu percebia que a linguagem não é ferramenta: é destino. Como no embate final entre João e o Tempo, lá no Capítulo 30 da edição original, a palavra funda o mundo e ao mesmo tempo o perde — ela abre a porta e fecha a saída. Ela é o gesto e a ausência do gesto, tudo ao mesmo tempo.

Vieram quatro versões. Quatro tentativas de encostar o dedo nesse intervalo entre o sujeito e o real, esse espaço simbólico que a psicanálise insiste que é onde vivemos de verdade. A clínica me emprestou suas vozes. O inconsciente enquanto linguagem me ofereceu estrutura. Mas foram as pessoas que vi desmoronar e se recompor diante de mim que me ensinaram João: suas crises, seus fantasmas, seu desalento com a própria existência. Eu também me vi ali, claro. É impossível escutar tanto sem que algo reverbere para dentro.

Não escrevo, desfaço-me. Há um trecho no Capítulo 10 do livro em que o fluxo da mente escorre pelas veias. Aquilo não é invenção literária. É memória. Quando a escrita me toma, eu deixo de ser autor e me torno canal. Não organizo, não planejo, não argumento. Eu apenas mergulho, e a palavra é a correnteza decidindo por onde seguir. Esse livro nasceu exatamente assim, como quem volta de um transe com uma nova pele.

A filosofia existencialista não está ali para ser defendida ou atacada. 

Ela apenas existe, como existe o vento nas folhas, como existe um copo caindo da estante. Meu gesto foi só apresentar as coisas como elas são. Sem enfeite, sem promessa. Em 2023, a cirurgia cardíaca me lembrou que o tempo não é metáfora. É corpo, é limite. É por isso que ele aparece como antagonista. Mas antagonista não é vilão. A narrativa insiste nisso: cada força ocupa seu lugar no tabuleiro da vida, e a única sabedoria possível talvez seja o equilíbrio entre elas.

Carolina Maria de Jesus aparece como totem porque não dá para separar arte de política, nem política de ancestralidade. A arte é a nossa tentativa mais honesta de tocar aquilo que não tem nome, de aproximar o corpo do indizível. E a ancestralidade é quem segura nossa mão nesse caminho cheio de sombras.

Quanto à Pessoa-Que-Lê, desisti faz tempo de procurar uma ideal. 

Isso é fantasia narcisista. Escrevo para ser lido por quem quer que seja capaz de atravessar o livro e permitir que o livro o atravesse de volta. Não importa origem, estudo, trajetória. A única coisa que importa é que algo se mova dentro da pessoa quando ela chega ao fim.

E talvez o momento em que mais me movi como autor tenha sido o capítulo “A Carruagem (conserto) no Céu”. Ele não é o último da narrativa, mas foi o último que escrevi. João se transforma ali, torna-se o “maior escritor do universo”, e de algum modo eu também precisei me transformar para escrever aquelas linhas.

Escrever A Palavra-Humana foi isso: rasgar e costurar minha própria subjetividade até que a linguagem encontrasse seu lugar. Ler A Palavra-Humana, espero, é permitir que essa costura também passe pela sua pele.

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