Quando até o luto é negado - uma reflexão sobre a morte

 

Descrição da imagem: um caixão sendo abençoado por um sacerdote.

O Brasil é uma terra manchada de sangue desde sua formação. Sangue de todos os tipos, mas que geralmente tem uma predominância do tipo de cor, de crença, de corpo.  Como já diria o poeta Emicida "a dor deles choca, a nossa vira piada". E dentre várias injustiças que atravessam nossos corpos nessa civilização macabra ainda há além da perda a impossibilidade do reconhecimento da dor.

A morte implica no reconhecimento de que houve um dia vida.

Mesmo no mais macabro momento, a existência ainda é um fator absoluto, inquestionável. Porém o Brasil é um lugar tão sinistro que não apenas quer destruir os corpos que rejeita, mas apagar sua existência.

Quantas vidas tentaram apagar em nossa história? De negros, cujo sofrimento foi negado até mesmo em hinos que exaltam que "nunca houve escravidão", ou o genocídio indígena que já dura quinhentos anos, que não é só o processo sistêmico de tingimento de uma terra com sangue, mas sim o processo de nem mesmo se considerar que ele existiu.

E em 2021, sim, ainda na modernidade, vemos que há uma tentativa empenhada de apagar 600 mil mortes que poderiam ser evitadas. Um luto negado, um choro abafado pela política gananciosa, corrupta. O Brasileiro não tem paz nem mesmo para o luto, para chorar seus mortos com dignidade. E isso é desumano.

Talvez tenhamos oportunidades funestas quando há perdas extremamente lamentáveis como a de pessoas famosas, como houve ontem com a cantora Marília Mendonça. Talvez ao chorar por ela, de forma catártica o brasileiro possa chorar a dor que lhe foi negada. Mas até quando vamos precisar esconder nossos parentes dentro de santos de outras religiões? Cultuando ídolos que nos foram impostos enquanto sussurramos o nome daqueles que realmente estão no nosso sangue?

Toda tragédia é o que é, uma tragédia. Toda dor é sofrimento. Toda morte uma perda irreparável.

Porém a perda nos marca para sempre, no entanto ela pode se tornar uma ferida aberta e infeccionada ou uma cicatriz saudável. Passar por um processo de luto pode nos ajudar a chegar na segunda possibilidade. Então choramos por nossos ídolos, choramos por aqueles que a sociedade nos permite chorar. Mas todo choro deveria ser autenticado. Toda dor deveria ser válida. Porque toda ferida tem o direito de se fechar.

Negar o luto que só vem da justiça histórica através do reconhecimento dos assassinatos que fundaram essa sociedade é criar uma sociedade cheia de feridas abertas que tenta de forma fútil ignorar as mesmas. Isso é grave, porque feridas abertas infeccionam e podem matar o corpo inteiro. Reconhecer nossas dores talvez seja uma forma de não fomentar uma sociedade doente, que pode carregar em seu colapso todos os nossos corpos.